A aluna sempre sentiu a necessidade de ir além do que era proposto em sala de aula. “O professor passava uma tarefa, eu terminava e pensava: já quero outra, eu já aprendi isso, eu quero mais. Eu sempre quis mais”, afirma. Ela costumava terminar as atividades rapidamente e, para preencher o tempo, desenvolveu o hábito da leitura. “Senão eu ficava a aula inteira sem fazer nada”.
Sophia Petschow da Silva, aluna com altas habilidades do Polo Ativamente. Foto: Lara Donnola
Como funciona a mente de Sophia, adolescente superdotada de Joinville
Sophia Petschow da Silva, de 14 anos, tem altas habilidades em artes e comunicação
Aos 14 anos, Sophia Petschow da Silva já sabe que seu jeito de pensar é diferente. “Eu sempre me senti esquisita, porque as crianças falavam de alguma coisa e eu falava de coisas completamente diferentes”, diz ela, que é uma das 60 alunas atendidas pelo Polo Ativamente, em Joinville. A unidade atende estudantes com indicadores de altas habilidades ou superdotação.
A estudante tem indicadores de superdotação principalmente nas áreas das artes e da comunicação. Desde pequena, percebia que era diferente das outras crianças, e se destacava na escola por ser uma aluna muito estudiosa e interessada. “Eu sempre tive interesses e gostos diferentes. E eu sempre quis entender por que eu era diferente e o que significava essa diferença”, diz. Ela conta que isso a fazia se sentir deslocada.
Sophia sempre foi autodidata e muito curiosa. “Com três, quatro anos, eu já pegava livros para ficar olhando. Gostava de olhar as tarefas dos meus irmãos mais velhos pra tentar entender. Pegava os cadernos, ficava olhando e pensava: nossa, que incrível!”, conta.
Quando era pequena, ela escrevia de cabeça pra baixo e as palavras ao contrário, além de conseguir ler com facilidade o que estava escrito. “Eu achava que era normal, porque minha mente funcionava assim”, conta. “Eu só parei de fazer isso quando eu cheguei no 1º ano e a minha professora ficou olhando o meu caderno tentando decifrar aquele ‘árabe’”, conta ela, rindo.
Altas habilidades em artes e comunicação
Aos 5 anos ela começou a se interessar pela área de artes. O gosto surgiu inspirado por uma colega de sala, que mostrou um desenho pra turma e todo mundo sorriu. “Nesse momento eu pensei: se eu começar a desenhar, posso fazer as pessoas felizes também? Eu sempre gostei de ver essas pessoas sorrindo”. A partir daí, ela começou a aprender a desenhar e descobrir técnicas artísticas.
Sophia vê a arte como uma forma de expressão. “A arte é meu tudo. É uma forma de expressão muito acessível para todos nós, e é isso que torna ela bonita. Por meio de qualquer tipo de arte é possível dizer tudo aquilo que não conseguimos falar diretamente para as pessoas”, declara Sophia. Ela acredita que a forma de expressão através da arte é o que a torna especial.
Além da arte, a escrita também entrou cedo na vida de Sophia. Com nove anos ela começou a escrever poemas, histórias e músicas. “Eu já criava histórias nas brincadeiras com meus irmãos, mas foi aí que comecei a colocá-las no papel e dar vida e estrutura a elas”, informa.
O interesse por palavras permanece até hoje. “Eu sempre fui apaixonada por letras e palavras. Eu brinco que coleciono palavras. Tenho uma lista enorme das que fui aprendendo ao longo dos anos”, conta. Hoje ela gosta de escrever poemas, contos e romances.
Desde pequena, Sophia se interessava por conversas que fugiam do comum para a sua idade. Gostava de ouvir histórias de vida e fazer perguntas profundas aos adultos, como “que lição você tem para o mundo?” ou “o que você tem para me ensinar?”. Ela menciona que as pessoas estranhavam esse comportamento. “Eu sabia que pelos adultos serem mais velhos, eles têm muito pra ensinar, e eu tenho muito pra aprender”, diz.
Hoje ela tem diversos hobbies, além de ler, escrever, desenhar e pintar, está aprendendo violão. “Eu gosto de fazer muita coisa. Gosto de costurar, criar, ter contato com a natureza, que é algo que me inspira muito e eu acho muito necessário”, afirma.
Com tantos interesses, definir uma profissão ainda é cedo para ela. “Eu já quis ser escritora, artista, até arquiteta. Mas não gosto de pensar que preciso ser uma coisa a vida inteira, porque eu acho que ninguém precisa, todo mundo pode mudar. Então eu quero ser muitas coisas. Quero ser tipo a Barbie”, comenta.
Dificuldades por ser diferente
Sophia conta que já enfrentou dificuldades na escola por aprender de forma diferente. “Algumas pessoas pareciam ter raiva. Já tive colegas que não gostavam de mim, achavam que eu era metida ou que eu forçava pra ser inteligente, esse tipo de coisa. Era bem complicado”, relata. Por ter interesses diferentes dos colegas e se sentir deslocada, isso fez com que ela se retraísse.
“Eu me tornei uma pessoa muito tímida. Teve uma época em que eu era muito fechada, não conseguia dizer uma única palavra”, conta Sophia. A insegurança começou a surgir a partir da sensação de não pertencimento. “Eu pensava: ‘eu não sou igual a eles’, e comecei a me sentir mal, achava que iam me julgar se eu dissesse do que eu gosto”, expressa.
Como a socialização com pessoas da idade dela era difícil, a adolescente sempre se deu melhor com pessoas mais velhas. “Até hoje eu não encontro muito assunto com pessoas da minha idade. Mas com pessoas mais velhas eu consigo conversar bem”, informa. Na época, isso fez com que ela tivesse poucos amigos. “Mas hoje em dia eu tenho bastante”, completa, com um sorriso de quem reconhece o próprio amadurecimento.
“Eu gostaria que as pessoas entendessem que a gente não se sente superior, muito pelo contrário. Muitas vezes a gente se sente pra baixo por não conseguir se comunicar direito. É difícil ser diferente”, exprime Sophia, pedindo por mais compreensão e respeito.
A aluna também não gosta de ser vista como alguém que sabe de tudo. “Não sabemos de tudo, nós somos seres humanos também, só somos mais curiosos, mais buscadores de conhecimento. A gente só gosta de aprender”, declara. “Então, eu gostaria que as pessoas respeitassem nossos interesses, buscassem aprender com a gente e também nos ensinar, porque a gente ama aprender”, finaliza.
Foto: Lara Donnola
A sensação de deslocamento acompanhou Sophia por anos, até que, em um dia comum na escola, ela foi abordada por uma professora do Atendimento Educacional Especializado (AEE), que a convidou a responder um questionário. “Ela disse que queria me encaminhar para o Polo Ativamente, que na época estava só surgindo. Eu respondi as perguntas e, dias depois, recebi a notícia de que eu passei e ia entrar no polo”, relata.
Quando foi reconhecida como uma criança com altas habilidades, a felicidade foi grande. Até então, ela não imaginava que poderia ser considerada “especial” por suas capacidades, principalmente nas artes, sua área favorita.
“Eu achava que eu não era tão boa assim, mas ver as pessoas reconhecendo a maneira como eu faço as coisas me deixou muito feliz”, conta. Ao chegar ao Polo Ativamente, foi muito bem recebida, o que tornou a experiência ainda mais marcante. “Foi incrível, eu me senti ótima”.
Identificação de alunos com altas habilidades
Segundo a coordenadora do Polo Ativamente, Roberta da Luz Engels, a identificação de estudantes como Sophia começa com indicações feitas por professores, familiares ou até pelo próprio aluno. “Uma vez que esse aluno é identificado, se inicia uma investigação com questionários aplicados ao professor, à família e ao aluno”, explica Roberta. “Havendo compatibilidade entre as respostas, entende-se que o aluno apresenta algumas características de altas habilidades”.
Depois disso, é iniciado o chamado “processo exploratório”, que pode durar até um ano. Ele acontece tanto no contraturno quanto durante o horário escolar, por meio de observações, acompanhamentos e atividades extracurriculares. “Nesse período, o aluno é estimulado e acompanhado com o objetivo de desenvolver as potencialidades dele. Ao fim de um ano, fazemos um parecer pedagógico, que relata tudo o que foi ofertado e se o aluno deu continuidade às características observadas”, informa a coordenadora.
Caso os indicadores se confirmem, o estudante é considerado apto a participar do projeto do Polo Ativamente até o 9º ano. Se o parecer for negativo, ele é desligado do projeto, mas permanece sob acompanhamento da equipe escolar. Também podem ser considerados laudos externos, como pareceres de neuropsicólogos, que reforcem os indícios apresentados.
Antes da criação do Polo Ativamente, a rede municipal já atendia alunos com essas características por meio dos profissionais do Atendimento Educacional Especializado (AEE), que seguem atuando nas escolas. “Altas habilidades são parte da educação especial. Não são só crianças com deficiência ou dificuldades”, explica Roberta. “Já existia esse olhar, mas não de forma tão específica quanto agora com o polo”, completa. Atualmente, o polo atende estudantes do 1º ao 9º ano.
O papel das oficinas e a descoberta de novos talentos
Após o processo inicial, os alunos ingressam na oficina exploratória, onde trabalham de forma coletiva, independentemente da idade ou área de interesse. “Isso é até uma característica deles, de gostarem de trabalhar com pessoas mais velhas”, diz Roberta. O período exploratório nas oficinas dura cerca de dois meses. Quando a área de interesse do aluno é identificada, ele é direcionado para uma das oficinas específicas: artes, lógico-matemática, tecnologia e robótica e comunicação e expressão.
“Se ainda houver dúvidas, o aluno continua por mais um tempo na oficina exploratória”, explica a coordenadora. Todo o trabalho realizado ali também é replicado pelas equipes do AEE nas unidades escolares, com base em um guia municipal de identificação e atendimento.
Roberta destaca que não há uma única área em que os alunos se sobressaiam. “Eles chegam com alguns indicadores, mas muitos se reconhecem em outras áreas durante a oficina exploratória. Alguns que achavam que eram bons só em matemática, por exemplo, descobrem que têm habilidades em artes ou comunicação”, informa.
Ela também explica que existem diferentes tipos de superdotação (acadêmica e produtivo-criativa), segundo a teoria do psicólogo Joseph Renzulli, referência na área. A superdotação acadêmica, mais facilmente identificada na escola, envolve alto desempenho em disciplinas curriculares.
Já a superdotação produtivo-criativa, voltada para a arte e a criatividade, é mais difícil de perceber no ambiente escolar. “Às vezes o aluno é muito bom só em uma área. Pode ser excelente em matemática e não se destacar em português, por exemplo. Isso é normal”, explica Roberta.
Mitos, desafios e o impacto do Polo Ativamente
Segundo a coordenadora do Polo Ativamente, um dos principais objetivos do projeto é desmistificar o que se entende por altas habilidades. “Ainda há muitos mitos. Muita gente acha que o aluno com superdotação precisa ser bom em tudo, um gênio, tirar nota 10 em todas as matérias. E não é assim. Um aluno não identificado, não estimulado, pode acabar sendo visto como ‘aluno problema’”, explica Roberta.
Ela afirma que a falta de reconhecimento pode trazer consequências graves. “Esses alunos têm risco de depressão, baixa autoestima. É um público que preocupa e precisa de atenção”, afirma.
Segundo a coordenadora, é comum que esses estudantes passem despercebidos ou sejam confundidos com alunos indisciplinados, quando na verdade precisam de estratégias específicas de acompanhamento.
O Polo Ativamente foi criado para dar suporte a esses estudantes e às suas famílias e professores. “Nosso objetivo é identificar esses alunos precocemente e dar a eles o suporte necessário.
Orientações para professores e responsáveis
Além do trabalho com os alunos, o Polo Ativamente também realiza formações para professores e encontros com as famílias. “Fazemos trilhas formativas com os professores, reuniões com os pais, encontros com a comunidade. Precisamos falar a mesma língua. Não adianta o aluno fazer de um jeito, o professor de outro e a família de outro. O Polo junta esses três anéis: aluno, escola e família”, resume.
O atendimento às famílias ocorre por meio de encontros como o “Construindo Saberes e Vínculos”, que oferece orientação e traz profissionais para falar sobre temas específicos. “Esse suporte é essencial. A gente acolhe as famílias, orienta como lidar com as crianças e tenta garantir que todos caminhem juntos no desenvolvimento do aluno”, informa.
Atualmente, 60 alunos estão matriculados no Polo Ativamente, mas ainda há outros em processo de encaminhamento pelas escolas da rede. Roberta ainda destaca a necessidade de que a iniciativa seja expandida para outras regiões da cidade. “Só a escola não vai dar conta. O Polo é um marco para Joinville. Um espaço importante, que identifica, acolhe e desenvolve o potencial desses alunos”, finaliza.
Roberta explica que, segundo a legislação brasileira, os termos “altas habilidades” e “superdotação” são sinônimos. “Mas há estudiosos que diferenciam. Alguns dizem que altas habilidades podem ser desenvolvidas, enquanto a superdotação é algo inato, genético. Nós seguimos o que está na lei”, informa.
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