Comunidade quilombola de Joinville: uma história de luta contra o preconceito e por reconhecimento
Beco do Caminho Curto só foi reconhecido como comunidade quilombola remanescente no ano passado
Beco do Caminho Curto só foi reconhecido como comunidade quilombola remanescente no ano passado
O caminho se inicia com o que já estamos acostumados: excesso do cinza, barulho e um sol escaldante que insiste em brilhar por entre os prédios. Cerca de 30 minutos após o início da viagem, a paisagem urbana pouco apreciativa dá lugar às cores do Distrito de Pirabeiraba. É como se entrássemos em outra cidade.
O único detalhe que permanece, passaria até despercebido não fosse o ruído dos carros, é a estrada comprida e asfaltada que cerca as fazendas e sítios da região. A comunidade quilombola Beco do Caminho Curto é logo aqui.
“Pode entrar, a Gorete ‘tá’ te esperando lá nos fundos, no galpão. Leva a moça lá, menino”, avisa Marcela, irmã de Gorete.
No galpão, Gorete Aparecida de Oliveira, 44 anos, e Senilda Aparecida da Graça, 34, as líderes comunitárias, aguardam sentadas, rodeadas de outras 15 mulheres e algumas crianças. Gorete é a que mais fala, as outras, ouvem atentas. “Ela é a nossa porta-voz”, diz Senilda.
Enquanto ela conversa, o sossego e a tranquilidade de sua fala mansa pairam no ambiente, jeito este que todas carregam. A calma da sua fala pode até passar a impressão de que a rotina é tranquila, mas elas trabalham, e como trabalham.
Pela conquista de direitos, de sua terra, contra preconceitos e para colocar comida na mesa. A última grande conquista aconteceu há um ano, quando a comunidade foi reconhecida como quilombola.
Ao contrário do que se pensa, as comunidades quilombolas não ficam em locais isolados e não são formadas por escravos. Esta é uma noção de um passado remoto da história, ligado ao período de escravidão. Foi no século 17 que surgiram os primeiros quilombos, formados por escravos que fugiram de engenhos e plantações.
O mais famoso deles foi o de Palmares, na Serra da Barriga (Alagoas). A data da morte de seu líder, Zumbi dos Palmares, em 20 de novembro de 1695, foi a escolhida para o Dia da Consciência Negra.
No Brasil, de acordo com a Comissão Pró-Índio de São Paulo, há cerca de 4 mil comunidades quilombolas no país, espalhadas em pelo menos 24 estados brasileiros. “Nós somos descendentes de escravos que já viveram aqui neste território”, explica Gorete.
Foram mais de dez anos de batalha até a Beco do Caminho curto ser reconhecida como comunidade remanescente quilombola. Gorete conta que os moradores não faziam ideia de que o espaço havia sido habitado por seus ancestrais.
Quando o “condomínio de luxo” — como costumam chamar — foi construído em frente à comunidade, fiscais da prefeitura tentaram multar as famílias em R$ 1,8 mil, alegando que suas moradias eram irregulares.
O desespero tomou conta dos moradores, a quem foram oferecidas duas alternativas: pagar a multa ou arrumar outro local para morar, por meio do programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal.
“Aqui tinha o tal do usucapião, mas como era antigamente, um pedaço do terreno pra cá foi falado à boca, que tinha mais valia do que hoje. Queriam tomar o que era nosso de direito. A gente queria permanecer aqui, somos uma família. Sair daqui e vamos pra onde?”, questionou Gorete, à época.
Quem ajudou a comunidade foi a assistente técnica pedagógica da Coordenadoria Regional de Educação (CRE) e militante do Coletivo Cor Púrpura, Alessandra Cristina Bernardino. “Foi ela que correu atrás de tudo”, conta a porta-voz da comunidade.
Alessandra teve conhecimento da comunidade em meados de 2008, quando um grupo de militantes fundou o Movimento de Consciência Negra Brasil Nagô, composto por uma professora de Pirabeiraba que apresentou-os ao local.
A pedagoga conta que, em 2007, a Beco do Caminho Curto já tinha um processo de certificação em andamento na Fundação Cultural Palmares (FCP), no entanto, apenas em 2013 receberam a visita técnica da fundação.
O processo precisou ser adiado por mais seis anos, pois ainda haviam documentos pendentes. Este fato impactou também no conhecimento histórico da comunidade, que pouco sabe sobre seus ancestrais.
“Nós conhecemos pessoalmente uma mulher descendente de escravos da comunidade Ribeirão do Cubatão, que era minha madrinha. Meu pai nasceu lá e veio pra cá com meu avô. Foram feitas várias reuniões e após muita batalha, em 2019 recebemos o certificado”, conta Gorete.
“Estava aqui (no galpão), naquele preguinho, mas depois de um vento forte levamos pra casa da mãe”, conclui, apontando para a parede.
A certificação federal como quilombola deu à comunidade muito mais do que apenas um quadro pendurado na parede. Gorete conta que, além de ficarem isentos das multas pela ocupação no terreno, houveram melhorias em direitos e políticas públicas.
“Mudou pra gente ter conhecimento e respeito, né? Foi bom alguém dar um reconhecimento pra nós. Um é nas faculdades, a gente já tem um direito de uma porcentagem a menos. A minha filha foi uma delas, se cadastrou como quilombola e ganhou uma bolsa na Univille”, diz. Sua filha, de 20 anos, cursa administração.
Alessandra Bernardino afirma que a comunidade passou a ter maior visibilidade em 2003, após a visita de um médico do conselho de saúde de Pirabeiraba, que diagnosticou o maior problema dos moradores: os vermes.
“A cada consulta, por semana, era diagnosticado um tipo de verme diferente, na mesma pessoa. Isso é o ‘calcanhar de Aquiles’ da comunidade há muito tempo. Houveram vários óbitos e internações relacionados a essa causa”, explica.
À época, o problema ocorria por falta de saneamento básico. Atualmente, conforme Alessandra, todos têm acesso à saúde pública, com esporádicas visitas de agentes comunitários, e água encanada.
“Os serviços de energia elétrica ainda atendem somente algumas casas. Horários de ônibus também eram escassos, o que prejudicava a mobilidade para estudar e trabalhar no período noturno. Mas com a ação da Defensoria Pública, os horários aumentaram”, reconhece.
Pela falta de registros, pouco se sabe sobre os primeiros habitantes da Beco do Caminho Curto. No formato e local atual, a comunidade tem cerca de 70 anos. No início, conta Gorete, seu “vovô”, avó e pai saíram de outra comunidade para morar onde estão hoje.
“Aqui, onde estamos era mato, fazíamos casinhas de palha por baixo das samambaias. A nossa cama que o pai fez era de tarimba, de pedaços de palmito”, lembra Gorete.
Com o passar dos anos, os habitantes foram casando, tendo filhos e, atualmente, moram cerca de 40 famílias no local, com pelo menos quatro habitantes cada uma. Todos têm algum grau de parentesco. Gorete e Senilda, por exemplo, são primas.
“Tem gato, cachorro. Crianças tem mais de cem”, brinca Senilda.
Isto é fato. Há vestígios de crianças por toda parte. Desde brinquedos encontrados pelo chão à correria que iniciam quando brincam de pegar. Já as casas, em sua maioria de madeira, possuem janelas estreitas das quais apresentam duas opções de paisagem: aos que moram à frente, o muro do “condomínio de luxo”, aos que moram nas laterais, o vasto pasto de fazendeiros que criam gados.
Para o sustento, a maioria dos moradores trabalha fora, mas a comunidade também cultiva a plantação de alimentos, a criação de galinhas e de outros animais para consumo. Eles também recebem ajuda da população.
Gorete conta que nunca chegaram a passar fome, mas em, 2018, quando seu marido sofreu um acidente e ficou de cama, teve de tomar as rédeas da situação e se virar para pôr comida na mesa.
Senilda até tentou trabalhar fora, mas foi denunciada por vizinhos dos arredores da comunidade por deixar a filha mais velha, de 15, cuidando dos mais novos.
“Eu tive que pedir a conta. Não é porque eu não quero trabalhar, até falam por aí, mas eu quero, eu tenho cabeça. Vou me formar, estou fazendo EJA (Educação para Jovens e Adultos) com a Gorete. Eu queria fazer uma faculdade, mas não tem como deixar eles sozinhos, entendeu?”, expressa.
Além das batalhas já travadas por direitos, a comunidade também sofre com o preconceito. Senilda aponta que, por Pirabeiraba ser uma região onde a maioria dos moradores são alemães, há alguns olhares atravessados que precisam ser digeridos diariamente, que a fizeram até refutar o fato de ser descendente de quilombola.
“No começo, assim, eu não aceitava como quilombola, sabe? A gente saía por aí e ficavam falando ‘lá vem a quilombola’. Aquilo me doía, é preconceito. Agora não, eu falo que sou quilombola com muito orgulho”, atesta.
Gorete conta que pisar fora da comunidade tem seus desafios, principalmente quando saem em família para fazer compras em mercados ou lojinhas da região.
“O que eu fico ‘P’ da vida é quando a gente vai nas lojinhas, porque quando a gente vai, vai em turma, né, com os filhos, e vai gente atrás: ‘ah, você quer cestinha?’. A gente fala ‘não, só estamos olhando’, daqui a pouco pergunta de novo. Se a gente quisesse cestinha já tinha pegado lá”, desabafa.
Gorete ainda conta que a primeira vez que a comunidade apareceu na TV, vizinhos passaram a debochar, o que motivou a saída de uma das líderes comunitárias.
“Por causa disso, a gente acaba não gostando das nossas raízes. Se a gente sair com turbante ali na rua, com certeza vão ficar olhando e rindo’, argumenta.
Para a moradora mais velha da comunidade, Lúcia Catarina Oliveira, 62, que mais cedo, puxava lenha com o marido, Marino de Oliveira, 65, e cipó para fazer vassoura, pertencer à comunidade é sinônimo de orgulho.
“Isso é coisa que a gente batalhou bastante. Aqui, fico perto da família, é a alegria da minha vida ficar perto dos meus filhos e netos”, reconhece.
Aos que antes negavam ou não conheciam as suas origens — não por menos, já que viveram uma vida de lutas internas e externas por conta da cor de sua pele — agora lhes resta a dignidade e o reconhecimento de que fazem parte de um processo histórico, onde o país, aos poucos, vai reconhecendo seu passado do jeito que realmente foi.
*Errata: anteriormente informamos que o Quilombo do Palmares ficava na Serra da Bexiga. A informação foi corrigida.