Conheça o joinvilense que restaura e coleciona geladeiras
Antigo funcionário da Consul, Juvenal Antonio da Costa tem em seu acervo peças desde o século 19
Conheça o joinvilense que restaura e coleciona geladeiras
Antigo funcionário da Consul, Juvenal Antonio da Costa tem em seu acervo peças desde o século 19
- 06/03/2020
- 7:00
O sol acaba de se pôr e Juvenal aprecia sem pressa o céu do entardecer: “é o encontro do dia com a noite, eu gosto disso”. Com a perna direita acima da esquerda e braços apoiados sobre a cadeira de forro vermelho, o único movimento que se preocupa em fazer é o de colocar seus longos cabelos atrás da orelha. Ele contempla, em silêncio, a ‘boca da noite’.
Na superfície de mais de cem metros quadrados, a iluminação de luzes elétricas reflete um caminho com plantas medicinais, flores e geladeiras distribuídas ao redor, figurando um padrão harmonioso, digno de um artista. Essa foi uma das lições que tirou de suas aulas de pintura: “não se coloca uma obra de arte em cima da outra.”
Juvenal prende o cigarro que estava entre os dedos da mão esquerda na lateral dos lábios e, no movimento de comprimir os olhos para conter a fumaça que insiste em lhe arder as vistas, coloca na vitrola Marlui Miranda. Simpatizante, ele explica que a cantora, além de ativista, foi uma das únicas artistas a se dedicar à música indígena no país.
Dos mais de 3 mil discos de vinil que guarda em sua coleção, do rock psicodélico de Pink Floyd ao baião de Luiz Gonzaga, Juva escolhe uma trilha sonora específica para restaurar geladeiras baseado no perfil do dono e na época em que a peça foi fabricada. “Sem trilha sonora eu não consigo nem sonhar”, diz.
Todas as manhãs, o restaurador saca seu uniforme — avental, bermuda, chinelo, pulseiras e colares de artesanato — e vai para a oficina fazer o conserto dos refrigeradores. Traumatizado com as horas desgastantes em que batia ponto na Consul às 5 horas da manhã, optou por acordar todos os dias depois das oito, com o sol batendo na cara, coisa que não fazia desde os 14 anos.
Juvenal evita tomar comprimidos, acredita na cura das ervas medicinais que cultiva em sua horta. Apesar da forte ligação com a natureza e da devoção por Deus, em março de 2014, após uma enchente que alastrou a cidade, sentiu medo. Boa parte de seus itens de casa, catálogos, vinis e revistas, além de algumas peças de geladeira, foram consumidos pela água.
Após a enxurrada, ele, a esposa Célia e o filho Diogo reformaram o ambiente. O que antes era um acúmulo de refrigeradores e outros objetos de coleção aos fundos da casa de madeira, deram vida a uma oficina e a um museu de geladeiras, com direito a passagem para cadeirantes. “A chuva veio para renovar”, afirma.
Antiguidades
Junto às antiguidades que tem dentro de casa, no bairro Iririú: relógios, louças, panelas, eletrodomésticos e móveis, divididas entre os seis cômodos do ambiente ficam 15 geladeiras, das mais coloridas e cheias de adesivos, às mais simples, de uma cor só, que fazem parte do seu acervo pessoal. No museu há mais 80 peças, apenas 5% delas são de clientes. Todas estão sujeitas à venda, mas, claro, “tudo tem seu preço”, alerta Juvenal.
A mais antiga que possui em seu acervo é de madeira, do século 19, mais especificamente do ano de 1890. Na época, por não ser elétrica, era preciso comprar gelo para resfriá-la — o gelo vinha enrolado em palha de arroz, que servia como uma espécie de isolante térmico; o resfriamento durava por apenas uma noite.
De 1920, tem o modelo da primeira geladeira elétrica que chegou ao Brasil. Vinda dos Estados Unidos, a raridade armazena o compressor na parte de cima; a peça compunha um gás considerado tóxico.
A arte de acumular
A paixão por geladeiras começou em 1979, quando ainda trabalhava na Consul, considerada a maior fabricante de eletrodomésticos do mundo. Contudo, na época, por ser visto como um objeto de luxo, a primeira geladeira que teve veio das mãos do seu Helmut, em 1994, dono de uma oficina de geladeiras na década de 1950. Juvenal se considera um acumulador, mas não encara o título de forma negativa.
“Em 2004 foi quando comecei a enxergar a diferença do que é velho e do que é antigo. O que é antigo me atrai”, explica.
Para Juva, assim como pintar telas, fazer artesanatos e pôr para funcionar geladeiras de outras épocas, acumular é uma arte. Lida com as geladeiras com muita calma e cuidado, como quem lida com um bebê.
Em suas mãos a geladeira deixa de ser um simples objeto de resfriar e se transforma em um acervo de histórias capaz de atravessar décadas e resgatar saudades passadas, como na década de 1970, quando as peças faziam parte de um ritual de encontro: abertas apenas duas vezes ao dia, para fazer o almoço ou o jantar, conservavam o alimento, responsável pelas reuniões em famílias ao redor da mesa.
Dentre placas antigas de geladeiras, canecas penduradas no teto e pôsteres de bandas, Juva também possui um quadro de Getúlio Vargas suspenso com prego na parede. O artista, que destoa dos indivíduos do seu tempo, apesar de posicionado, vive a política por obrigação. Seu objetivo é fazer ligações temporais dos objetos e usar sua imaginação para divagar por dentre as épocas. “Quem sabe uma geladeira dessas não foi de Getúlio? Ou de Janis Joplin, ou do Jim Morrison? Por que não?”, fantasia.
Poucos fios de cabelo branco
Os cabelos compridos de Juvenal, apesar de conter poucos fios brancos, reservam histórias. Tudo começou na Copa de 1994. Após 90 minutos do tempo normal e o fim da prorrogação, a partida empatada em 0 a 0 entre Brasil e Itália foi para os pênaltis. Na última cobrança, feita por Roberto Baggio, a seleção italiana precisava marcar. Juva, que costumava raspar os cabelos, naquele dia, agarrou-se com Deus, ajoelhou-se em frente à TV e prometeu: “Se ele (Baggio) errar o pênalti eu só raspo o cabelo na próxima Copa”, lembra. A seleção brasileira se sagrou tetracampeã.
Mesmo o Brasil tendo perdido a Copa seguinte, atrelado ao gosto pelo Rock, resolveu conservar os cabelos compridos até hoje. Apesar de não ter vaidade e cortar os próprios cabelos sozinho, se certifica de usar água fria e shampoo para fios oleosos.
Além do esporte, em suas horas de lazer, costuma consumir livros e revistas antigas. O tipo de história que lhe cativa é a documental, que não chama a atenção de quase ninguém, mas que traz significados à existência do que quer que seja, como a invenção do abecedário, por exemplo. À parte do mundo tecnológico, sem redes sociais, apesar da forte ligação com aquilo que não se usa mais, não sente-se uma pessoa atrasada, mas à frente de seu tempo.
Em sua fase atual não existe falta de tempo, trocou o que nem chegava a ser dúvida pelo certo, que mais lhe valem a vida: além de sua profissão, seu filho Diogo, amigos, seus três cães: Laka, Raposinha e Pretinho e, claro, seu grande amor de um casamento de 32 anos, Celinha — para quem deve tudo na vida e os olhos brilham só de tocar em seu nome.
“Não fosse a Celinha, hoje eu estaria com meu violão, vivendo de sementes sem rumo pelo mundo”.
As tábuas de madeira e folhas de pinho secas ardem no fogão à lenha na varanda de casa. Juvenal costuma acender o fogo rotineiramente, exceto os dias que beiram os 40 graus. Rodeado de seus três cães, observa os estalos e faíscas que saltam do fogo. É hora de preparar o jantar.
Aos 56 anos, ainda curioso para experimentar a velhice (como citou Caetano Veloso), Juva, natural de Cianorte (PR), se sente jovem o bastante e faz do mundo um local fácil de se habitar. Para o futuro, sonha em trocar a fumaça poluente das fábricas que impregnam no ar pela calmaria da praia. Mas, até lá, segue sugando memórias e resgatando antiguidades a bordo de sua rural anos 70, afinal, acumular é uma arte.
Para quem se interessar, o museu de Juvenal fica na rua São Carlos, número 111 – bairro Iririú. As visitações devem ser agendadas com antecedência, pelo número: (47) 99984-4114.