Conto: “A rua da vida”, por Alexandre Setter
Alex nunca precisou olhar para os lados para atravessar uma rua. Fazia mais de 40 anos que ele apenas andava, independente se fosse para cruzar uma rua deserta ou uma avenida super movimentada. Ele apenas apertava o passo, consistente, não parava nem hesitava e chegava ao outro lado sem parecer se dar conta dos carros […]
Alex nunca precisou olhar para os lados para atravessar uma rua. Fazia mais de 40 anos que ele apenas andava, independente se fosse para cruzar uma rua deserta ou uma avenida super movimentada. Ele apenas apertava o passo, consistente, não parava nem hesitava e chegava ao outro lado sem parecer se dar conta dos carros que passavam raspando, das motos que como torpedos zuniam por todos os lados, dos ônibus e caminhões alheios à sua presença. Era como se o tráfego não existisse. Ou melhor, o tráfego fosse ele.
Alex apenas fluía seu corpo por entre as máquinas de aço em movimento mas não era uma dança; era uma marcha em linha reta que por um milagre matemático traçava caminho seguro, fazendo com que a travessia parecesse um truque de mágica.
Mas naquela tarde morna de primavera, Alex hesitava, confrontava com um estranho receio a rua que o desafiava e que pulsava o vaivém do trânsito típico de uma grande cidade à beira do colapso.
“Você sabe por que a galinha atravessou a rua?” sussurrou uma voz asquerosa, rouca e repleta de deboche.
Um arrepio ancestral correu pela espinha de Alex, todos os pêlos de seu corpo se eriçaram em posição de alerta.
“Mazark, quanto tempo…” foi a única coisa que Alex conseguiu falar e mesmo assim as palavras quase não saíram de sua boca seca.
“Ela só queria chegar ao outro lado, a galinha… Mais ou menos como você agora Alex… só quer chegar ao outro lado. Por que não faz como ela e apenas atravessa?” o bafo sonoro que alcançava os ouvidos de Alex causava nele um misto de enjoo e repulsa.
“Não sei… O outro lado não me parece um bom lugar para ir agora” Alex se negava a virar e fitar Mazark. Mas não por muito tempo.
“Só que você precisa ir, não é mesmo? Você tem que atravessar essa rua, entrar na clínica e pegar o resultado dos seus exames. É a ordem natural das coisas, você precisa… VOCÊ PRECISA!”
A voz tinha se transformado em um estrondo ameaçador, o arrepio na espinha, num punhal de gelo cravado em suas costas. Alex não teve escolha a não ser girar seu corpo e encarar Mazark, olho no olho. Ele não lembrava o quão desprovido de vida e luz era o olhar de Rettes Mazark. Dois buracos negros que sustentavam duas bagas opacas, como bolas de gude velhas e sujas.
Nada existia no pequeno espaço entre os dois olhares, ar ou qualquer vida microscópica, nada. Era um nada ameaçador entre eles. “Você vem comigo, atravessa a rua junto?” Alex sabia bem as consequências desse convite inusitado.
“Mas não é por isso que estou aqui?” A ironia sórdida que Mazark carregava em suas palavras só piorava o embrulho nas entranhas de Alex.
Os carros, motos, ônibus pareciam ter se multiplicado nos últimos minutos, o ruído dos motores, as buzinas, os insultos entre os motoristas, tudo parecia ganhar vida própria, parindo um grande monstro prestes a participar da conversa dos dois homens que se encaravam.
“Eu… realmente não queria, não estou me sentindo bem, e…” Alex balbuciava quando Mazark estendeu sua mão e Alex entendeu que era o momento. Ao se darem as mãos, algo extraordinário aconteceu. O monstro do tráfego que estava descontrolado pareceu diminuir de tamanho e ir desaparecendo aos poucos, fazendo com que a travessia da rua voltasse a ser algo tranquilo, como sempre tinha sido.
E eles foram rumo ao outro lado, sem olhar e sem cuidados. Como sempre tinha sido.
Alex sentia-se estranhamente anestesiado, nada o perturbava. O corpo fluía por entre a loucura da avenida. Quis soltar a mão de Mazark e ao fazer isso percebeu que estava sozinho no meio da rua.
O monstro tinha voltado: roncos, buzinas, gritos… a última freada de um caminhão que não conseguiu evitar de acertar Alex em cheio. Seu corpo esparramado na pista, desfigurado. Conseguiu ainda vislumbrar o circo de curiosos que o cercava; pedestres e motoristas, todos com a boca aberta, os olhos aterrorizados, as mãos na cabeça.
“Alex” aquela voz nojenta de novo! “Agora é a hora. Venha, não precisa se preocupar. Para este outro lado que você vem, não existem ruas para atravessar”.
“Mas, o que meus exames iriam mostrar, Mazark?”
“Que você já estava morto por dentro, há muito tempo. Os exames são mera formalidade”
“Então… nunca mais ruas, nunca mais travessias? O que é ISSO, agora?”
“Alex, chegou a hora de você ser eu, de ocupar esse meu lugar. De ser você aquele indesejado que vai chegar na hora de fazer as pessoas atravessarem a rua da vida rumo ao descanso. Sei que não é o papel mais cobiçado, mas é o mais importante. Chegou a hora, Alex. A morte também precisa descansar”.