Isabel Lima
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O joinvilense Francisco de Assis Nascimento Filho foi o primeiro paciente a ter um transplante de fígado de sucesso na história do Hospital Municipal São José. A cirurgia ocorreu em 24 de junho de 2010, seis meses após entrar na fila do transplante. Antes dele, apenas um transplante desse tipo havia sido realizado no hospital, mas o paciente não resistiu.
Até descobrir a cirrose hepática e a necessidade de um novo órgão, Francisco, atualmente com 68 anos, passou anos tratando uma esquizofrenia que nunca existiu. Os sintomas começaram em 2008, quando o bancário passou a conviver com crises de pânico e alterações de humor. “Eu perdi a noção da hora, das coisas”, relembra Francisco.
O novo estado de saúde o levou até um médico psiquiatra que rapidamente o diagnosticou. “Foi um choque. Não sabíamos de praticamente nada [sobre a doença]”, conta o transplantado.
Foram quase dois anos tomando cinco remédios tarja preta por dia. A alta dosagem das substâncias o deixou amortecido. “Eu vivia que nem um zumbi, não me lembro bem das coisas que aconteceram naquele período.”
Embora seguisse à risca o tratamento, os sintomas não amenizavam. Essa falta de resultados fez com que procurasse um médico da família. Após realizar uma série de exames de sangue a pedido do clínico, Chico descobriu que, na verdade, tinha hepatite C.
Os sintomas psicológicos eram resultado da encefalopatia hepática, que é o impacto cerebral da doença hepática grave. “Meu fígado estava envenenando meu cérebro”, explica. O novo diagnóstico ocorreu em 2009, cerca de 30 anos após ter contraído o vírus.
“Foi uma sensação de alívio, mas também começou uma outra situação atrás da cura”, recorda Ivone Busch Nascimento, 67, esposa de Francisco.
“Naquela época, nem se conhecia a hepatite C”
Em 1978, aos 38 anos e recém casado, Francisco teve uma forte crise de amigdalite crônica. Ele teria que fazer a cirurgia de retirada dos órgãos. “Mas como as amígdalas estavam muito inflamadas, tive que tomar oito injeções de benzetacil”, explica.
Na época, não haviam seringas descartáveis. Embora as agulhas fossem, a higienização das seringas consistia, segundo Chico, em colocar os objetos em água quente. Não havia autoclaves, que são os aparelhos de esterilização que a medicina usa atualmente. Mesmo que a água chegasse aos 100ºC, não era suficiente para matar todos os vírus e bactérias. “Ali eu contraí o vírus da hepatite C. Naquela época, nem se conhecia a hepatite C”, completa.
Evolução da doença
“A hepatite C é uma doença de evolução lenta, ela começou a dar sintoma só 30 anos depois”, conta o aposentado. Essa lentidão permitiu que ele construísse uma família com a esposa Ivone sem ao menos saber que estava infectado. Os dois se conheceram no carnaval no Teatro da Liga e e engataram um namoro de anos.
Depois de idas e vindas por Lages e Curitiba (PR), voltaram para Joinville, onde Francisco se estabeleceu como bancário. Casaram em 1977 e ganharam a primeira filha dois anos depois, a Francine. Alice veio em 1984 para completar a família.
Preparação para o transplante
Após os exames prévios no clínico geral, Francisco foi encaminhado a uma clínica para se desintoxicar. “Eu estava impregnado de medicamentos tarja preta”, relembra Chico. Depois foi conduzido à hepatologista Raquel Liermann Garcia, do Hospital São José.
A médica introduziu medicamentos para tratar a hepatite C e solicitou diversos exames para entender a gravidade do quadro de Francisco. “A biópsia [do fígado] revelou que eu tinha cirrose hepática difusa e um tumor no fígado. Daí ela [Raquel] me colocou na fila do transplante”, recorda.
“Eu tinha previsão de dois meses de vida”, diz Francisco. No entanto, devido à medicação adequada para tratar a doença, Francisco superou os poucos meses que estavam previstos para ele. “Quando estava completando seis meses na fila do transplante, apareceu um doador”, conta com detalhes todos os momentos que passou ao lado da família e da esposa.
Quando descobriram que finalmente Chico poderia realizar a cirurgia, a família e amigos se mobilizaram. As filhas Francine e Aline organizaram uma pasta intitulada “Vida Nova”, que Ivone guarda com carinho e cuidado até hoje.
Ali estão mensagens, e-mails, cartas e recortes de jornais desde o momento em que Francisco contou aos familiares que estava saindo de casa em direção ao hospital para ganhar uma nova vida.
“Meu fígado chegou. Serei transplantado nesta madrugada, no Hospital São José. Peço que rezem por mim. Até breve”, diz a mensagem escrita por Francisco e enviada dia 23 de junho de 2010, às 23h20. Nas próximas horas, ele e esposa receberam respostas de apoio vinda de amigos e familiares.
Do telefonema ao transplante
“Recebi um telefone que eu deveria ir ao Hospital São José, onde iria ser realizado o transplante, na véspera de São João”, conta Francisco. O telefone tocou cerca de 22h, no dia 23 de junho de 2010. Quem atendeu foi Ivone. “Chico, tá na hora”, lembra de como contou ao marido.
No momento que receberam a notícia ninguém sabia falar nada. “Ficamos dois mudos”, Ivone se diverte lembrando. “A gente já tinha falado tudo que precisava”, completa.
Ao chegar no hospital, Francisco teve que tomar um banho e passar um produto no corpo. Ivone recorda de tudo. “O chuveiro estava frio, não esquentava. Mas naquele momento, a gente não reclama de nada”.
“A cirurgia começou às 3h e terminou às 16h. Foram 13 horas e correu tudo bem, graças a Deus”, recorda a esposa. Ivone esperou no hospital durante toda a operação e inclusive lembra do momento em que o órgão chegou no hospital. “Foi bem emocionante porque ele já estava na sala de operação tendo a preparação e eu na sala de espera quando dois enfermeiros entraram com uma maleta. Ali estava o fígado dele”.
“Minha vontade era ter acompanhado a operação, mas não deixaram”, relata a esposa. Quando ele saiu da sala de cirurgia, a esposa conseguiu entrar junto no elevador e acompanhar o marido até a entrada da UTI.
Apesar das boas lembranças, algumas recordações mais duras perduram. “Não é uma cena muito agradável, ver meu marido com um monte de fios ligados, foi bem difícil”, conta Ivone.
Francisco tem uma breve lembrança de quando acordou no leito de terapia intensiva. “Quando eu voltei a mim, ainda meio grogue, a primeira coisa que eu fiz foi arrancar todos os fios”, conta rindo. Depois disso, Francisco foi sedado.
Foram 11 dias internado na UTI. As enfermeiras mandavam os visitantes conversarem com o recém transplantado, pois Chico ouvia tudo. Devido aos medicamentos, as conversas unilaterais criaram uma certa confusão na cabeça do bancário. Até hoje ele não tem certeza de todos que o visitaram.
Depois, passou mais quatro dias no quarto. Ao fim de quinze dias, recebeu alta e foi para casa.
Para Ivone, o apoio dos enfermeiros e equipes do hospital foi essencial e completo. Ela conta que foi tudo muito difícil pois era algo novo na família, já que ninguém tinha passado por isso antes. Ela reforça a importância da médica Raquel. “Ela foi uma peça chave”, pontua.
Quem é o doador?
Ivone acredita ter descoberto de quem era o novo fígado do marido. Seria um jovem de 17 anos atropelado por um caminhão enquanto andava de bicicleta. Entretanto, não há garantia que seja mesmo esse o doador.
Em entrevista ao jornal O Município Joinville, a médica Raquel Garcia conta que o contato entre a família do doador e o transplantado não é recomendado. “A felicidade de um nem sempre é proporcional a dor do outro, isso pode gerar conflito”, explica.
Quem faz a abordagem para pedir a doação é uma equipe especializada de enfermagem. Segundo o médico cirurgião André Carminati Lima, do ambulatório de transplante de fígado do Hospital São José, a expertise dessas profissionais é essencial para aumentar as chances de um transplante se concretizar. “A família que vai dizer sim ou não para a doação”, pontua.
“Ele teve sucesso no transplante e na cura da hepatite C”
Uma semana antes da boa notícia, Francisco havia realizado uma embolização no Hospital Dona Helena para o tumor não crescer. Quando abriram para trocar o fígado encontraram outro tumor. A médica Raquel recorda do caso, que foi um dos primeiros do hospital. “Foi emblemático, ele teve sucesso no transplante e na cura da hepatite C”.
Francisco conta orgulhoso que ele teve o primeiro transplante de sucesso do Hospital São José. Foi ali que começou uma nova fase do tratamento. O novo órgão precisa ser aceito pelo corpo do transplantado. Embora seja compatível, existe a chance de rejeição. Para garantir a viabilidade da nova vida, Francisco passou a tomar diversos remédios e deve continuar o tratamento pelo resto da vida.
Todos os dias pela manhã ele toma seis comprimidos, cinco no período da tarde e depois do almoço aplica insulina. A diabetes surgiu logo após o transplante, devido à medicação anti rejeição, que pode aumentar a glicemia de alguns pacientes.
Segundo a médica hepatologista Raquel, é comum que os transplantados desenvolvam diabetes ou outras reações metabólicas. Raquel explica que “a maioria deles é medicado e resolvido”. A médica conta que, devido a modernização das medicações, os “efeitos colaterais possíveis de serem tratados são mais comuns que uma rejeição”.
Mas no caso de Francisco, a doença prevaleceu. Ivone conta que os remédios são muito caros. Se a rede pública não oferecesse de forma gratuita, talvez não conseguissem manter o tratamento. “A gente precisou tanto do nosso convênio como do SUS. A gente fica muito agradecido porque no postinho ele recebe a insulina, que é uma caneta. E na farmácia da Univille, ele recebe os remédios de anti rejeição. Nunca falhou.”
“São 12 anos que eu pego todo mês, com hora marcada. É certinho.”, conta Chico. Para ele, o único aspecto que poderia melhorar é a opção de entrega em casa. O aposentado conta que a locomoção se tornou difícil ao longo dos anos, isso porque uma das consequências da diabetes é a necessidade de mijar com frequência. “Isso limita as minhas saídas”, acrescenta.
Rede de apoio
Ivone, educadora por profissão, sempre foi curiosa e buscava entender cada detalhe da doença do marido. Além do auxílio da equipe do São José, o casal utilizou das redes sociais para se informar. Entraram em comunidades do Orkut (antiga rede social), que eram fóruns informativos e de suporte emocional. Ali conheceram transplantados, familiares de transplantados e pessoas na fila do transplante de todo o Brasil. Cada um compartilhava sua história e prestava apoio quando o outro precisasse.
Ela guarda impresso as mensagens de quando contaram para os amigos da internet que Chico receberia o novo fígado. O casal tem muito carinho por todos que se mostraram presentes em todos os momentos. Principalmente Ivone, que passou todo o tempo ao lado de Francisco no hospital e precisou de apoio emocional.
Mas o mais tocante para Ivone foi o amparo das filhas, que foram pilares para a mãe conseguir manter a força e a fé. “Elas sabiam que ele estava sendo cuidado, então deram bastante apoio pra mim.”
Além do emocional, a aposentada afirma que um dos pontos mais importantes para o tratamento é a confiança nos médicos. Ter suas inúmeras perguntas respondidas e esclarecidas serviu de calmante para ela.
Vida pós transplante
“O transplante me deu a chance de conhecer meus netos”, diz Francisco. Hoje, o casal tem cinco netos, todos nascidos após a operação. Os planos do casal agora são vender a casa na zona sul de Joinville e se mudar para Cocal do Sul, no Sul de Santa Catarina. Lá moram as filhas e netos.
“É um pedaço da nossa história de vida entre tantas outras que a gente já passou”, finaliza Ivone.
Doação
Até o momento em que a equipe de cirurgia coloca o novo órgão no paciente, muitas etapas e processos são superados. Segundo o cirurgião André, a primeira equipe envolvida é a da UTI que trata o doador. Ali é identificada viabilidade de doação de cada um dos órgãos. Feito os testes prévios, a equipe das Organizações de Procura de Órgãos (Opos) é acionada e entra em contato com a família do doador.
Neste momento, pode haver entraves. Isso porque os potenciais doadores sofrem morte encefálica, normalmente fruto de acidentes ou AVCs e as famílias não estão prontas para tomar essa decisão de forma rápida após a perda, que pode ser inesperada.
Por isso é importante que as pessoas conversem com as famílias e informem o desejo de doar, pois são eles que tomam a decisão.
Caso a família autorize, a Opos informa a Central Estadual de Transplantes de Santa Catarina (SC Transplantes) que consulta no sistema quem é o melhor potencial paciente a receber o ou os órgãos. Assim que o candidato é identificado, o hospital é informado e começam novos processos.
Setembro Verde
O Setembro Verde é uma campanha nacional que tem o objetivo de conscientizar a incentivar as pessoas a serem doadoras de órgãos. Os órgãos que podem ser doados após a morte são: coração, pulmão, rim, fígado, córneas, tecidos, tecidos ósseos, pâncreas, valvas cardíacas.
Segundo relatório da SC Transplantes de junho de 2022, 1.114 pessoas estão na fila de transplantes no estado. Os três órgãos mais aguardados são, rins (514), córneas (457) e fígados (54); seguido de medulas ósseas (41), tecidos ósseos (25) e pâncreas (20).