“É difícil lidar com um nível de dor tão intenso e não carregar consigo”: conheça a delegacia regional de Joinville
Delegada Tânia Harada está há quatro anos à frente da regional da Polícia Civil e fala sobre emoções vividas e conquistas alcançadas
Por Sabrina Quariniri
sabrina@omunicipiojoinville.com
Mulher de fé, a delegada Tânia Harada norteia sua vida pessoal e profissional amparada aos símbolos que carrega junto ao pescoço: um par de algemas e um crucifixo.
“As algemas simbolizam o meu trabalho, já o crucifixo é a força que todos nós temos que ter, com a convicção que estamos no mundo para tentar torná-lo melhor”, expressa.
Ela defende que mesmo atuando em uma profissão que nem sempre proporciona momentos felizes e ambientes agradáveis aos olhos, é preciso ter sensibilidade. Inclusive, seu toque humanizado está presente entre as paredes da Delegacia Regional, através de pinturas e desenhos infantis, a fim de tornar o local mais acolhedor.
No entanto, em meio aos esforços, há histórias que acabam sendo levadas para casa e permanecem na memória mesmo com a passagem do tempo.
“É muito difícil atender uma mulher vítima de violência doméstica, com 50% do corpo queimado, e não levar isso pra casa. É muito difícil atender uma criança estuprada e não levar isso pra casa. É muito difícil lidar com um nível de dor tão intensa e não carregar consigo. Isso pra mim sempre foi um dilema”
“Sempre me disseram que eu deveria separar as coisas, mas nunca consegui. Se eu conseguisse separar as coisas, será que eu faria o melhor que posso? será que o correto mesmo é atender um abuso sexual infantil e não se envolver com isso? Eu acho que não”, termina.
Casos marcantes
Tânia conta que a unidade que mais aflorou seus sentimentos por ter de lidar com situações sensíveis foi a Delegacia de Proteção a Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (Dpcami).
“Por isso houve um esforço da nossa parte para melhorar as condições de trabalho daquela delegacia. Eu sempre trabalhei em delegacias que atendem de tudo um pouco, mas trabalhar em uma que o foco é só esse… Eu não vejo, hoje, onde a polícia seja mais necessária do que na defesa de um público vulnerável quanto o que esta delegacia atende”, admite.
A delegada regional ficou por dois anos à frente da Dpcami de Joinville e foi justamente lá que viveu um dos casos que mais marcaram a sua carreira. Em janeiro de 2015, uma mulher de 49 anos teve 40% do corpo queimado por óleo e ácido pelo então companheiro que não aceitava o fim do relacionamento.
Tânia lembra que o homem invadiu a casa da vítima durante a madrugada. Até hoje, a mulher, vítima de violência doméstica, sofre com as consequências do crime.
“O ácido ficou corroendo o corpo da Maria de Fátima Cecílio por meses. Eu acompanhei o sofrimento dela e da família. Atualmente ela não enxerga, não tem os dois olhos, o rosto… Uma mulher nova e linda, que tinha a vida toda pela frente”, comenta.
Tânia defende que, mesmo proporcionando desgaste emocional, é importante que os profissionais se sensibilizem com casos desta esfera, de maior impacto.
“Devemos carregar isso conosco e saber o tamanho da nossa responsabilidade, já que a polícia, às vezes, é a única porta que vai estar aberta para essas pessoas. A violência não escolhe padrão social, mas a maioria (das vítimas) são pessoas que não têm recursos próprios”, afirma.
“Tem que dar a cara a tapa”
Há quatro anos administrando a Delegacia Regional de Polícia Civil, Tânia faz questão de frisar que o trabalho da Polícia Civil é de investigar um crime que já ocorreu, diferente da Polícia Militar, que atua de forma preventiva.
À frente de 17 delegacias espalhadas por seis diferentes municípios (Joinville, Araquari, São Francisco do Sul, Barra do Sul, Garuva e Itapoá) garante que comandar as unidades foi o maior desafio profissional já imposto em sua vida.
“Minha função é demanda de gestão. Isso envolve a complexa gestão de pessoas no serviço público, a manutenção e tentativa de melhorias de estrutura nas nossas unidades, articulação com outras instituições e busca por parcerias. É orientar, cobrar e elogiar”, resume.
Tânia esclarece que a função de uma delegada regional não é de atuação na investigação propriamente dita, mas de proporcionar meios e recursos para que os profissionais consigam desempenhar essas atividades.
“É uma função de representação. Somos funcionários comissionados, nomeados pelo governo do estado, para representar a Polícia Civil em uma região. Realmente tem que dar a cara a tapa, e o fato de eu não estar trabalhando diretamente na investigação, no sentido de fazer pedido de prisão ou pedido de buscas, monitoramento, não quer dizer que eu não acompanhe muito proximamente as investigações mais relevantes de crimes de maior repercussão em Joinville”, assegura.
Aproximar mulheres da polícia
Com 20% do efetivo da Delegacia Regional de Joinville composto por mulheres, Tânia afirma que, independente da profissão, em ambientes predominantemente masculinos é muito comum que ocorram situações de machismo.
Na primeira delegacia que assumiu, no Oeste do estado, ela foi foi a primeira mulher a compor o cargo na unidade. O fato foi visto com curiosidade pelos moradores da localidade e gerou até manifestação pública por parte do prefeito.
“Ele se queixou explicitamente que haviam encaminhado pra lá uma mulher. Neste tipo de situação, quando isso ocorre, eu quero inverter e ganhar a confiança daquela pessoa. E foi isso que ocorreu”, narra. Fato aconteceu no início de sua carreira.
A delegada pensa que o número de mulheres na Polícia Civil ainda é pequeno e, por não ter uma limitação burocrática, quer incentivar cada vez mais mulheres a entrarem para a corporação.
Quanto maior o cargo, conforme Tânia, menor é o número de mulheres que ocupam as cadeiras. Ela cita que de 32 delegacias regionais, apenas quatro mulheres coordenam as unidades.
“Quando eu sinto que há uma dúvida acerca da minha capacidade por questão de gênero, isso não é um desestímulo, é um impulso. Assim como ocorre no setor privado, notamos um afunilamento da presença feminina, à medida que vai se aproximando do corpo da cadeira hierárquica. Mas eu busco muito valorizá-las, quero ajudá-las a se sentirem mais empoderadas e capazes possíveis”, afirma.
Gestão feminina
Apesar de não desmerecer a contribuição masculina, a delegada Tânia acredita que uma gestão feminina busca tornar os ambientes mais humanizados. Ela conta que, durante sua administração, todas as delegacias foram equipadas com espaços para crianças. No momento, os brinquedos foram retirados por conta da pandemia da Covid-19.
Para deixar as paredes brancas das delegacias menos vazias e com mais vida, em parceria com pintores joinvilenses, há intervenções artísticas pelos quatro cantos das unidades. Além disso, na regional, há uma parede reservada só para desenhos de crianças que enviam aos policiais.
“A minha meta é fazer com que as delegacias tenham um ambiente físico melhor. É uma preocupação com ambiente, um olhar para criança. Enquanto a mãe vai registrar uma ocorrência, a criança vai fazer o quê?”, questiona.
Apesar dos espaços infantis estarem suspensos, por agora, há projetos sendo desenvolvidos pela delegacia pensados para o público infantil. Um deles é a escolinha de trânsito.
“A gente quer passar para eles uma noção de educação de trânsito, no intuito que eles sejam potenciais educadores. Queremos que as crianças corrijam seus pais”, explica.
As melhorias nos ambientes, conforme a delegada, não objetivam somente atender à população, mas também aos servidores que frequentam os espaços diariamente.
Projeto implantados
A criação do grupo de apoio e amparo a vítimas de crimes é uma das conquistas que Tânia faz questão de destacar. O projeto, vinculado a estudantes de psicologia da Unisociesc, psicólogos da Acij e uma psicóloga policial, visa dar suporte a pessoas com emocional afetado por experiências traumatizantes.
A delegada explica que, através da Central de BO (boletim de ocorrência), após o registro, já se inicia o contato com a vítima, caso ela aceite e necessite de acompanhamento clínico. Conforme a delegada, a meta é ajudar pessoas que não têm condições financeiras de arcar os atendimentos com recursos próprios.
Outra conquista importante citada pela delegada foi a adaptação da comunidade com a delegacia virtual da PC. Ela acredita que a plataforma passou a ser mais utilizada por conta da pandemia e, atualmente, para cada ocorrência presencial, 11 são registradas pela internet.
“Isso é importante porque a partir do momento que libera esta mão de obra do policial que está ali, eu posso aproveitar esta força na investigação, que é a nossa atividade fim”, exprime.
Reforço de efetivo
Além de novos projetos e melhorias, Tânia afirma que o efetivo da Dpcami foi reforçado e as condições de trabalho das delegacias especializadas (Dpcami, Divisão de Investigação Criminal e Delegacia de Homicídios) foram reorganizadas. Através de um diagnóstico preciso em cada unidade, foi realizada a distribuição de policiais conforme a demanda de trabalho.
A meta é retirar as atribuições das delegacias diárias e equipar cada vez mais as especializadas. “Eu não posso manter todas as delegacias com o mesmo efetivo policial, porque uma tem demanda maior e, outra, menor. Então, nós buscamos equiparar a carga de trabalho ao número de policiais de cada unidade”, explica.
Anteriormente, a Central de BO era localizada junto à Dpcami e foi desmembrada na atual gestão. Um dos principais objetivos, segundo a delegada, foi a busca por aproximação com a comunidade. Ela diz que a colaboração das pessoas, por meio de denúncias, tem aumentado consideravelmente.
“Tenho tentando deixar a Polícia Civil cada vez mais próxima da comunidade, a modo que não nos vejam com receio, mas como alguém que está próximo e disposto a defendê-la. Eu sinto gradativamente o nível de confiança da comunidade no nosso desempenho se elevando”, assume.
Resultados
Em 2020, 250 pessoas foram presas pela Delegacia Regional de Joinville. Com este número, a unidade foi a que mais prendeu no estado.
Investindo cada vez mais em delegacias especializadas, conforme Tânia, o próximo passo da DIC é atuar em duas novas frentes: roubo a comércio e roubo em residência. Ela aponta exemplos que comprovam a eficiência do trabalho especializado.
“A partir da instalação da Delegacia de Homicídios em Joinville, nós tivemos uma elevação no número de casos esclarecidos, nosso índice de solução de inquéritos aumentou. Já a Delegacia de Repressão a Crimes Ambientais (DRCA) colaborou com aumento de mais de 400% no número de prosseguimentos enviados pela PC ao judiciário com relação a esta matéria”, exemplifica.
Trajetória
Vestida com uma máscara cor de rosa do JEC, Tânia confessa que não tem tido tempo para acompanhar aos últimos jogos do Tricolor. Ela conta que se tornou torcedora após uma promessa que fez aos jogadores durante uma ação de doação de sangue, quando ganhou o adereço.
Inclusive, horas vagas têm sido objeto de luxo na vida da delegada, que dedica a maior parte de seus dias à corporação.
“Eu tento conjugar a vida privada com a profissional, mas confesso que a polícia consome bastante do meu tempo”, ressalta.
Natural de Curitiba (PR), sempre sonhou em morar em Santa Catarina. Ela diz que o desejo estava associado à infância, quando vinha com a família passar as férias no litoral.
Após formar-se em direito no ano 2000, chegou a exercer a função na capital paranaense, atuando na área criminal. Também foi assessora do Ministério Público, na mesma divisão. A área criminal sempre foi a menina de seus olhos.
“Toda minha atuação profissional, desde estagiária, está vinculada ao direito penal, que dizem que é primeiro amor do estudante de direito. Assim como dizem que é o primeiro amor, também dizem que este amor não dura. Mas no meu caso foi eterno”, brinca.
Antes de chegar a Joinville, Tânia atuou em comarcas do Oeste, Planalto Norte e, por fim, Norte de Santa Catarina. Quando chegou à cidade, em 2014, passou pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) e, em seguida, pela Dpcami. Em 2017, recebeu o convite para assumir a Delegacia Regional.
Por Joinville, além de carregar estampado no rosto o carinho pelo JEC, um dos maiores símbolos da cidade, Tânia também possui a satisfação de habitar a região Norte – um sonho de infância que foi realizado.
“Joinville ganhou o título da capital estadual do voluntariado. E este título é mais que merecido. Me chama muito a atenção como as pessoas se ajudam, são voluntárias. Da área religiosa ao empresariado e universidades, todos se ajudam. Esta é uma característica forte e a que mais gosto”, elogia.
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