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Entenda como laboratório da Polícia Científica em Joinville ajuda a solucionar crimes

Laboratório de entomologia forense da Polícia Científica é o único do tipo no sul do Brasil

O laboratório de entomologia forense da Polícia Científica de Joinville tem se destacado na área de perícia criminal. A divisão, única do tipo no Sul do Brasil, realiza análises em insetos para estimar o intervalo pós-morte, uma atividade crucial para investigações de mortes violentas.

O laboratório foi criado em janeiro de 2022. A estrutura atual centraliza esforços para receber amostras de todo o estado, com foco principal na região Norte. “A gente está tentando fazer esse ‘trabalho de formiguinha’ para tentar difundir e conscientizar o pessoal para coletar o material para a gente fazer as análises”, comenta Victor Botteon, biólogo e perito criminal responsável pelo laboratório.

Além de Victor, a equipe do laboratório é composta pelo biólogo e agente de medicina legal Anderson Gaedke e pela auxiliar de laboratório Nicole Goumbieski.

Nicole (à esq.), Anderson (centro) e Victor (à dir.) | Foto: Fred Romano/O Município Joinville

Análise minuciosa e criação controlada de insetos

O processo inicia-se com a coleta de amostras diretamente na cena do crime, seguindo procedimentos operacionais que envolvem a participação de agentes e peritos. As amostras são encaminhadas ao laboratório, onde são identificadas taxonomicamente.

No laboratório de entomologia forense de Joinville, o trabalho minucioso de análise das larvas é uma etapa crucial para o sucesso das investigações. Nicole descreve que as larvas são dissecadas com precisão utilizando um bisturi, permitindo a observação detalhada das estruturas sob o microscópio.

Foto: Fred Romano/O Município Joinville

Para garantir a eficácia desse processo, são utilizados compostos químicos, como ácido acético e soda cáustica, que facilitam a visualização no microscópio das características específicas das larvas.

“A Nicole faz cortes bem pequenos nas larvas para conseguirmos ver algumas estruturas, que são as chaves que usamos para fazer a identificação”, explica Anderson. Com base na identificação e nas condições ambientais, como a temperatura, a equipe calcula o tempo de morte.

Além disso, a criação controlada das larvas é fundamental para a obtenção de resultados precisos. Anderson explica que o uso de incubadoras permite simular as condições ideais para o desenvolvimento dos insetos.

Foto: Fred Romano/O Município Joinville

“A incubadora tem um controle de temperatura, iluminação e oxigenação, criando um ambiente propício para que a larva se desenvolva até virar mosca”, comenta. Esse controle é essencial para entender o ciclo de vida completo dos insetos, o que é crucial para a identificação e para a estimativa precisa do tempo de morte.

Casos marcantes

Victor Botteon destaca a importância da biologia dos insetos em comparação com métodos tradicionais de estimativa de tempo de morte. Ele exemplifica com um caso de homicídio em São Bento do Sul, onde o cadáver já estava esqueletizado e a estimativa pelo método tradicional tornou-se imprecisa.

“A gente coletou as ‘larvinhas’ no local do crime. Depois, o material chegou vivo, então foi feita a estimativa por esses cálculos para chegar até o dia que a gente chama de provável início em que aquela espécie fez a oviposição no corpo”, explica Victor.

“Tinha uma suspeita de um homem desaparecido no estado de Goiás e a Polícia Civil de Goiás mandou a ficha datiloscópica do suspeito de ser a vítima para cá. A nossa papiloscopista fez o confronto e identificou a autoria daquela vítima”, conta Victor.

“A pessoa estava desaparecida, era natural de Goiás. Ele estava conversando com a mãe e estava sendo ameaçado por tráfico de drogas na região. Ele pediu para a mãe comprar uma passagem de ônibus no dia seguinte para voltar para casa”, completa.

Victor conta ainda que a vítima nunca chegou a embarcar no ônibus e a mãe não teve mais notícias do filho. O cálculo da biologia dos insetos bateu com o dia do desaparecimento.

O laboratório também lidou com casos de alta repercussão, como o da Isabelle de Freitas, de 3 anos, menina de Indaial que foi morta pelo padrasto e pela mãe. A estimativa do tempo de morte ajudou a entender melhor a cronologia dos eventos.

Em alguns casos, o laboratório já foi consultado até mesmo para questões civis, como determinar a data de morte para fins de inventário, algo que antes era difícil de precisar.

Victor relata um caso em Campo Alegre no qual uma mulher foi encontrada em estado avançado de decomposição. Os peritos tiveram dificuldades para a realização de exames convencionais devido à ação intensiva das larvas. As larvas estavam concentradas nas regiões do abdômen e tórax, enquanto a cabeça estava relativamente preservada.

Victor explica que, em casos normais, as moscas tendem a depositar seus ovos em áreas mais expostas, como mucosas orais, olhos, ouvidos e nariz. No entanto, neste caso, a escolha das moscas por áreas não usuais sugere que a vítima pode ter sofrido uma lesão pré-existente na região abdominal, o que poderia ter atraído as larvas para essa área.

Anderson complementa que a análise entomológica também precisa considerar as condições em que a vítima foi encontrada. A presença de roupas pode alterar os padrões de deposição de ovos pelas moscas. Se a vítima não estivesse vestida, as moscas provavelmente depositariam ovos nas regiões genitais, que oferecem um ambiente mais acessível e úmido para a oviposição.

Estudos e contribuições científicas

Anderson explica que o laboratório tem se empenhado em compilar e analisar dados acumulados desde sua fundação. O objetivo é criar um referencial baseado nas espécies de moscas identificadas ao longo dos anos, um processo que muitas vezes pode levar semanas devido à complexidade taxonômica.

Um dos avanços mais notáveis resultantes desse esforço é a identificação de espécies raras encontradas pela primeira vez em Santa Catarina. Os achados, detalhados em dois artigos científicos, identificam as espécies Peckia intermutans e Sarcophaga ruficornis.

Polícia Científica/Divulgação

O levantamento faunístico realizado pelo laboratório é fundamental para a compreensão das espécies presentes e suas características específicas, permitindo uma melhor aplicação dos dados em investigações.

O primeiro artigo, intitulado “Entomological data from the first year of the Forensic Entomology Division formalization at Santa Catarina Scientific Police”, analisa dados entomológicos de 34 casos entre janeiro de 2022 e julho de 2023. Foram coletadas 21 espécies de insetos forenses em cadáveres humanos em diferentes estágios de decomposição e ambientes variados da região do Planalto Norte.

Foto: Fred Romano/O Município Joinville

O segundo artigo, “Case report of a preserved male corpse: estimation of post-mortem interval based on four Dipteran species of four different families”, descreve um estudo de caso de estimativa do intervalo pós-morte mínimo por análise entomológica. Este estudo envolveu um cadáver masculino preservado, encontrado em São Bento do Sul.

Victor destaca também a importância de um estudo recente sobre um besouro específico que aparece no final do processo de putrefação. Este besouro, que se alimenta de tecidos secos e cartilaginosos, é tão eficaz que é utilizado em laboratórios e museus para a limpeza de esqueletos.

O caso foi registrado em Iomerê e envolveu um cadáver mumificado de um idoso encontrado em casa, no qual métodos tradicionais não conseguiram estimar a data de morte devido ao avançado estado de mumificação. A identificação desse besouro foi pioneira em Santa Catarina e no Brasil, proporcionando uma nova base para a estimativa do intervalo pós-morte (IPM).

Esse estudo é especialmente significativo porque o besouro não é uma espécie pioneira e só aparece após um longo período de decomposição. Com isso, o laboratório agora tem uma base para estudar a biologia do besouro e o tempo que ele leva para colonizar um corpo após a morte.

Recentemente, o laboratório também começou a colaborar com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em pesquisas relacionadas à violência sexual, utilizando larvas para isolar e analisar DNA de possíveis agressores.

“Por exemplo, a larva comeu o esperma do agressor. A ideia é abrir essa larva, retirar do tecido dela o esperma e fazer os procedimentos de genética para conseguir isolar o cromossomo masculino e identificar o possível agressor”, explica Anderson.

Além disso, o laboratório está desenvolvendo pesquisas sobre o uso dos insetos em outras áreas, como a toxicologia. “Por exemplo, se a pessoa usou cocaína e agora a substância está dentro da larva. A gente retira de dentro da larva, faz os processos químicos e realiza o exame toxicológico da larva”, comenta Anderson.

Victor destaca também que os estudos atuais incluem o uso de larvas para detectar possíveis maus-tratos a animais.

Desafios na análise

Os servidores que atuam no laboratório avaliam que a área ainda enfrenta muitos desafios. “A nossa dificuldade em regiões mais distantes é o encaminhamento dos insetos vivos para fazer as criações aqui”, comenta Victor.

Nicole conta que a desinformação na hora da coleta do material pode atrapalhar o serviço do laboratório, devido ao baixo número de larvas ou até mesmo as larvas sendo enviadas congeladas.

“Num sentido amplo, [a dificuldade] é conscientizar os servidores sobre a coleta dos vestígios entomológicos, por conta mesmo do nojo que o pessoal tem”, completa Victor. Por fim, Victor avalia que ainda há poucos estudos na área, mas que Joinville tem tentado mudar essa estatística.