“Foi colocado um padrão no país em que o branco é o chefe e o negro é serviçal”, afirma Hemerson Maria
No dia da Consciência Negra, treinador que foi campeão brasileiro da Série B pelo JEC comenta sobre racismo
Foi no dia 29 de novembro de 2014, pouco depois da celebração do Dia da Consciência Negra, que o técnico Hemerson Maria, hoje com 48 anos, marcou história em Joinville. Nesta data, comandando por ele, o JEC conquistou o título da Série B do Campeonato Brasileiro, feito inédito para o time.
Atualmente sem clube, após passagem recente pelo Brasil de Pelotas (RS), Hemerson é um dos raros técnicos negros no futebol nacional. Maria colecionada títulos, vitórias e um posicionamento firme: a luta contra o racismo.
Para ele, ser negro e técnico de futebol no Brasil é uma luta constante em busca de respeito e igualdade, sendo necessário provar que tem as mesmas capacidades de pessoas brancas. O fato, conforme ele cita, está relacionado ao preconceito histórico presente no país.
“Qualquer falha ou deslize sofremos um julgamento maior, pessoas nos acham inferiores. Precisamos estar atentos, com poder de resiliência para conquistar espaço dentro da sociedade”, explica.
A explicação para a minoria de técnicos negros, segundo ele, é o racismo estrutural presente em terras brasileiras. Maria prova a contradição explicando que mesmo a maioria esmagadora dos jogadores em destaque do Brasil serem negros, são poucos os times que não são comandados por técnicos brancos.
“Foi colocado um padrão no país em que o branco é o chefe e o negro é serviçal. Não temos direito a falha”, critica.
Xingamentos e olhares
Hemerson Maria conta que atos racistas são crivados no seu corpo e mente desde a infância. Quando criança, precisava sobreviver sendo xingado de “macaco” e “preto safado”, por exemplo.
Além das palavras carregadas de ódio, os olhares de julgamento o acompanhava quando entrava em lojas e mercados.
“Achavam que iríamos roubar mercadorias. Tenho imagens fortes de racismo na minha infância”, desabafa.
Hoje, apesar de não ouvir mais os mesmos termos, Maria segue sentindo o racismo em diversos espaços e momentos.
“Sofro racismo quando entro em um restaurante e sou o único negro, quando vou buscar minha filha na escola particular e sou o único negro, quando vou numa concessionária de carros e sou o único negro comprando”, conta.
“Os olhares das pessoas, te mensurando, te olhando de cima para baixo, te fazem se sentir desconfortável”, afirma Maria.
Como técnico, a situação não muda. Ele reforça a questão dos olhares “estranhos” que as pessoas, segundo ele, fazem por estarem incomodadas em ver um negro como comandante o seu time.
“Não temos que matar só um leão, mas também um urso polar por dia. Qualquer erro cometido seremos condenados pelo racismo”, exclama.
Militância pela igualdade
O treinador acredita que a participação de atletas é fundamental na luta por igualdade racial, já que podem servir de exemplo para os mais jovens e crianças.
“No nosso país, o jogador de futebol tem a oportunidade de ser um representante das pessoas menos favorecidas, podendo mostrar que um negro pode exercer qualquer função na sociedade”, pensa.
Como figura pública, ele diz que se sente na obrigação de representar a luta por direitos iguais.
“Nós somos o sonho de liberdade dos nossos antepassados. Houve muito sangue derramado. Eu não posso ser conivente com o que acontece hoje. Nossa realidade ainda é racista, quem se cala para a opressão e injustiças passa a fazer parte do processo”, exalta.
“Nossa realidade ainda é racista, quem se cala para a opressão e injustiças passa a fazer parte do processo”
Suas referências condizem com sua postura e posicionamentos. Segundo ele, no esporte, todos os atletas negros que conseguem sucesso são suas inspirações.
Porém, figuras históricas que lutaram contra o racismo, como Martir Luther King e Nelson Mandela, fazem parte do seu cotidiano. Nomes que, para ele, são fundamentais para se ler, aprender, dar energia e argumentos sobre “ser negro”.
Suas fontes de inspirações não param por aí. Seu pai José Manoel e o avô, seu Osório, criaram suas famílias com dignidade e valores: trabalho, honestidade e respeito. Segundo o treinador, os ensinamentos são passados para sua filha e sobrinhos.
“Não podemos abaixar a cabeça, o racismo existe, precisamos combater cada vez com mais força”, explica, contundente.
Carreira profissional e fim do racismo
Com planos de crescer ainda mais profissionalmente, Maria afirma que está trabalhando e se capacitando na área futebolística.
Para ele, a carreira é motivo de orgulho. “Já passei por grandes equipes. Na derrota você aprende e volta mais forte. Me sinto orgulhoso de chegar onde cheguei”, afirma.
A luta, porém, nunca está separada do trabalho. “Vou lutar para que eu seja exemplo para as outras pessoas da minha cor. Com luta e dignidade podemos alcançar os mesmos cargos das pessoas brancas”, ressalta.
Para ele, o acesso à educação, como ingresso de pessoas negras na faculdade, é o caminho à igualdade racial. Ele diz acreditar em dias melhores, mas, para que isso aconteça, é necessário diminuir o abismo social que existe entre negros e brancos.
O treinador ainda que conta que é testemunha de pessoas brancas, da sua idade, que o confessaram ser criados por avós e bisavós, no qual o ensinamento era que os negros eram “inferiores, vagabundos e que não gostavam de trabalhar”, ou até mesmo que não “deveriam estar no mesmo ambiente”.
Hemerson reforça que todos têm capacidade, mas a sociedade precisa entender o que aconteceu no passado, com a escravidão. Ele lembra que o Brasil foi o último país das Américas a abolir o sistema escravagista.
“Fazem 132 anos que estamos livres contra 388 anos do regime de escravatura. Os negros tiveram um prejuízo cultural e social que não se recupera em pouco mais de um século”, finaliza.