Maioria das vítimas de violência sexual em Joinville tem menos de 15 anos; veja dados

Mais de 750 mulheres foram vítimas de algum tipo de violência no município em 2024

Maioria das vítimas de violência sexual em Joinville tem menos de 15 anos; veja dados

Mais de 750 mulheres foram vítimas de algum tipo de violência no município em 2024

Lara Donnola

Em 2024, 751 mulheres foram vítimas de algum tipo de violência em Joinville. Em relação à violência sexual, 70% das vítimas têm menos de 15 anos. Os dados são do Núcleo de Prevenção de Violências e Acidentes (NPVA) da Vigilância Epidemiológica e se referem às notificações registradas até 17 de novembro de 2024.

Embora o número represente uma leve redução em relação a 2023, que teve 883 notificações, os dados mostram um crescimento consistente ao longo dos últimos anos: foram 593 casos em 2020, 613 em 2021 e 733 em 2022, até atingir o pico em 2023. Mesmo com a queda em 2024, o total de registros continua acima dos níveis anteriores, evidenciando a persistência do problema no município.

A assistente social Fabiane Suel colaborou na sistematização dos dados sobre violência contra a mulher. Ela informa que a principal dificuldade na elaboração e análise dos dados é a subnotificação, o que compromete a precisão dos dados. Em 2024, o Mapa Nacional da Violência de Gênero apontou que 61% dos casos de violência contra a mulher não são notificados.

Os dados foram registrados com base em notificações realizadas por diversos serviços de saúde, públicos e privados, incluindo hospitais, Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e Unidades Básicas de Saúde (UBSs). Fabiane ressalta a necessidade de conscientizar profissionais sobre a importância de notificar as violências assim que tomam conhecimento, além de sensibilizar as próprias mulheres, que muitas vezes se sentem inibidas, ou são dependentes financeiramente dos agressores, o que dificulta a busca por ajuda.

Conforme os dados, os tipos de violência notificados em 2024 incluem negligência ou abandono (365), violência física (175), violência sexual (180), violência psicológica/moral (37), tortura (1) e violência financeira/econômica (2).

Por que algumas mulheres não denunciam?

A advogada Ana Paula Nunes Chaves, especialista em defender os direitos das mulheres, explica que muitas mulheres hesitam em registrar boletins de ocorrência por medo, vergonha e por serem frequentemente desestimuladas ou desacreditadas pelas autoridades policiais. Segundo ela, esse cenário dificulta o acesso à proteção e contribui para que muitos casos permaneçam invisíveis.

Ela cita exemplos que já ouviu de clientes sobre comentários de autoridades policiais que questionam a validade da denúncia ou culpabilizam a vítima e acabam fazendo com que muitas desistam de buscar ajuda. Segundo ela, comentários como esses fazem com que muitas mulheres desistam de registrar a denúncia. Além disso, a dependência, o medo de represálias do agressor e a vergonha também levam à subnotificação.

Segundo o delegado titular da Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso (Dpcami) de Joinville, Lucas Magalhães, é comum que a mulher permaneça em uma situação de violência por não ter alternativas de sustento ou por manter vínculos afetivos com o agressor, entrando em um ciclo de violência que se repete após períodos de aparente tranquilidade, o que torna a superação desse cenário ainda mais difícil.

Lucas acredita que, quanto melhor o atendimento prestado nas delegacias, mais as mulheres se encorajam a registrar ocorrência, o que acaba elevando o volume de notificações. “Em outros períodos pode ter havido o mesmo número, ou até mais, de episódios de violência, mas com subnotificação”, comenta. Ele também observa que o fortalecimento das leis, com a criminalização de diversas condutas no âmbito doméstico e familiar, também influencia no aumento das estatísticas.

Segundo o titular da Dpcami, de abril de 2024 a abril de 2025, a unidade registrou mais de 4,5 mil boletins de ocorrência e encaminhou ao Poder Judiciário mais de 2 mil medidas protetivas. Nesse mesmo período, a delegacia também concluiu mais de 1,4 mil procedimentos, entre inquéritos policiais e atos infracionais, além de ter cumprido mais de 100 mandados de busca ou de prisão.

70% das vítimas de violência sexual tinham menos de 15 anos

Segundo o relatório, a violência sexual apresentou maior incidência entre crianças, adolescentes e mulheres jovens, sendo que 70% das vítimas tinham menos de 15 anos. Houve casos de violência contra a mulher em todas as faixas etárias, incluindo meninas, mulheres adultas e idosas. Os dados ainda mostram que o grupo etário que mais sofreu violência foi de crianças com 1 a 4 anos de idade, com 194 casos registrados.

Além disso, a maioria das agressões foi cometida por pessoas próximas às vítimas, especialmente membros da família, como pais, companheiros, ex-companheiros e outros. Também houve registros de violência cometida por desconhecidos.

O delegado Lucas Magalhães explica que o alto número de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual não é uma realidade exclusiva de Joinville, mas um cenário que se repete em todo o país.

De acordo com a Agência Senado, a Ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) apontou um crescimento de 22,6% das denúncias de crimes contra crianças e adolescentes em 2024. Foram quase 290 mil relatos, segundo dados do órgão.

Segundo Lucas, esses crimes, em sua maioria, ocorrem dentro do ambiente doméstico ou familiar ampliado. Ele ressalta que quando a criança está dentro do ambiente familiar, os responsáveis tendem a baixar a vigilância, por confiar nas pessoas com quem se relacionam.

“É justamente nesse contexto que os abusadores se aproveitam, muitas vezes valendo-se da inocência da vítima ou impondo ameaças veladas, o que dificulta a revelação dos abusos”, disse.

O delegado afirma que, quando esses casos chegam ao conhecimento da Dpcami, são tratados com prioridade. No entanto, as investigações são de difícil elucidação devido a diversos fatores. “Isso envolve a participação obrigatória de psicólogos, então tudo isso toma mais tempo, já que não podemos ouvir essas crianças diretamente na delegacia”, explicou.

Os principais meios de agressão registrados em Joinville no período foram uso da força corporal ou espancamento (254), ameaças (87), envenenamento (38), objetos contundentes (30), objetos perfurocortantes (27), substâncias ou objetos quentes (21) e enforcamento (18).

Outro fator que dificulta é a ausência de vestígios materiais, já que, em muitos casos, como carícias indevidas ou atos sexuais que não deixam marcas físicas, a perícia raramente consegue detectar provas. Apesar das dificuldades, Magalhães ressalta que a Dpcami utiliza outras técnicas investigativas, como a coleta de testemunhos.

“É muito mais delicado quando envolve crianças”, afirmou, explicando que, ao contrário de uma mulher adulta, que compreende e relata com clareza o que ocorreu, a criança muitas vezes não consegue processar a situação nem distinguir bem o que é realidade ou imaginação. “Além disso, tabus impostos pelos responsáveis dificultam ainda mais que a criança consiga se expressar livremente sobre o que sofreu”, disse.

Importância da educação

“A prevenção da violência sexual contra crianças é fortemente prejudicada pela resistência à educação e à informação”, diz Leila Cristine Moraes Mautone, terapeuta ocupacional que também participou da elaboração do relatório sobre violência contra a mulher.

Leila explica que há um medo infundado de que ações educativas estimulem a sexualidade infantil, quando, na verdade, a proposta é proteger as crianças, promovendo o autoconhecimento, o reconhecimento dos limites do próprio corpo e a capacidade de se proteger.

Segundo ela, essa resistência é comum em serviços de saúde e educação, muitas vezes atravessada por questões ideológicas e políticas que impedem avanços e comprometem a proteção de crianças e adolescentes. Ela reforça que a educação deve ser adaptada à linguagem e à compreensão de cada faixa etária, para que as crianças possam identificar situações de risco e buscar ajuda quando necessário.

Para a profissional, quando há falhas na comunicação e na educação sobre o corpo e os limites, as crianças ficam vulneráveis e desprotegidas, especialmente nas famílias que não possuem acesso ou abertura para esse tipo de diálogo. Por isso, Leila defende que os serviços públicos assumam um papel ativo na disseminação dessas informações, superando as barreiras ideológicas em prol da segurança e do bem-estar das crianças e adolescentes.

A assistente social Fabiane Suel enfatiza a importância de uma atuação intersetorial para enfrentar a violência sexual contra crianças e adolescentes. Para ela, é essencial que diferentes setores do poder público, como educação, assistência social, saúde e comunicação, atuem de forma conjunta na elaboração de campanhas de prevenção. “Apenas com esse esforço coordenado será possível fortalecer a prevenção e a identificação precoce desses casos”, disse.

A advogada Ana Paula destaca ainda a responsabilidade coletiva na proteção dessas vítimas, ressaltando a importância de observar mudanças de comportamento e não naturalizar situações desconfortáveis, especialmente envolvendo pessoas próximas ou recém-chegadas ao convívio familiar.

Vitor Souza/Arquivo O Município

Já o delegado Lucas explica que, justamente pelo fato de os agressores serem, na maioria das vezes, pessoas próximas das vítimas, há campanhas desenvolvidas pela delegacia para conscientizar as crianças sobre questões relacionadas aos limites do próprio corpo.

“Há um projeto em que nossos policiais vão até as escolas e realizam palestras e atividades com essas crianças, para que elas entendam de que forma podem ou não ser tocadas, e quais partes do corpo não devem ser expostas ou invadidas por terceiros”, informou.

O delegado Lucas acrescenta que essas conversas, muitas vezes difíceis para os pais ou responsáveis conduzirem, são feitas por psicólogas especializadas, sempre com linguagem adequada à faixa etária das crianças. Além disso, são orientadas sobre o que é consentimento, e sobre quem devem procurar caso identifiquem uma situação de abuso.

Serviços de proteção às mulheres em Joinville

Fabiane Suel destacou os serviços de proteção disponíveis em Joinville, como a Casa Viva Rosa. Segundo ela, muitas vítimas não denunciam por não terem uma rede de apoio ou um local seguro para onde ir após romperem com o agressor.

A Casa Viva Rosa acolhe mulheres em situação de risco, oferecendo abrigo e proteção imediata após a formalização do boletim de ocorrência. Fabiane reforçou que esse acolhimento é fundamental para que a mulher não se sinta desamparada, principalmente quando há filhos envolvidos.

Além disso, Fabiane explicou que, após a passagem pela Casa Viva Rosa, a mulher pode acessar o chamado “auxílio desabrigamento”, um benefício oferecido pela prefeitura. Esse auxílio permite que ela alugue uma casa e permaneça nela com seus filhos por até um ano, garantindo segurança e estabilidade nesse processo de reconstrução da vida.

O serviço da Casa Viva Rosa orienta e encaminha a vítima para acessar esse benefício, oferecendo ainda apoio em outras questões práticas, como mudanças de endereço, trabalho, escola para os filhos, etc.

No entanto, a assistente social ressalta que a Casa Viva Rosa conta com uma estrutura limitada. O local tem capacidade para atender até 24 mulheres, que podem estar acompanhadas ou não de filhos. Fabiane destaca que ainda são necessários investimentos em iniciativas como essa. A unidade é o único abrigo da cidade que presta atendimento a mulheres vítimas de violência.

Como buscar ajuda?

Segundo Ana Paula, o primeiro passo fundamental para a mulher vítima de violência é registrar a ocorrência na Polícia Civil ou, se a agressão estiver acontecendo, acionar imediatamente a Polícia Militar e solicitar apoio. Ela destaca a importância de formalizar o boletim de ocorrência, mesmo que a vítima não queira processar o agressor naquele momento, pois esse registro cria um histórico que poderá ser utilizado futuramente, caso necessário.

Além disso, a Central de Atendimento à Mulher, Ligue 180, é um canal gratuito e confidencial que oferece apoio e ajuda às mulheres em situação de violência. A ligação pode ser feita de qualquer lugar do Brasil e funciona todos os dias, durante 24h. A central também presta informações sobre os direitos das mulheres e como denunciar casos de violência, além de encaminhar as denúncias aos órgãos competentes.

Em casos em que a vítima depende financeiramente do agressor, Ana Paula explica que é possível requerer pensão alimentícia por meio de uma ação judicial, já que as medidas protetivas não garantem esse direito de forma imediata. Além disso, ela orienta que as vítimas busquem apoio em programas sociais do governo, como Bolsa Família e Vale Gás, para obter suporte financeiro até conseguirem se restabelecer e alcançar autonomia.

Além disso, a advogada orienta que a vítima busque orientação jurídica o quanto antes, para conhecer seus direitos, entender quais medidas podem ser tomadas e evitar a perda de prazos importantes. Esse acompanhamento especializado é essencial para garantir proteção e acesso aos recursos legais disponíveis.

“A grande prevenção é a informação. Eu digo que informação é empoderamento”, destaca Ana Paula. Segundo ela, é fundamental que mulheres e crianças compreendam o que configura crime e entendam que relações familiares nem sempre são saudáveis, pois a violência psicológica, patrimonial e outras formas também causam danos graves.

Ela afirma que a prevenção depende de ampla divulgação, como palestras e campanhas em escolas, empresas e serviços sociais, para que essas condutas não sejam naturalizadas e as vítimas saibam reconhecer e denunciar a violência.

O que precisa melhorar?

Na avaliação da advogada Ana Paula Nunes Chaves, a rede de proteção às mulheres em Joinville não funciona de forma efetiva. Ela destaca que, embora se fale muito sobre violência, a vítima acaba ficando sozinha e sem o suporte necessário.

Para ela, Joinville, como a maior cidade do estado, deveria ter uma Casa da Mulher Brasileira, um espaço que concentrasse todos os serviços e programas de apoio, permitindo que a mulher pudesse resolver sua situação em um só local.

Ana Paula aponta que um dos principais obstáculos para as mulheres denunciarem é o horário restrito de funcionamento das delegacias especializadas em violência contra a mulher. Ela ressalta a importância de haver uma delegacia 24 horas. “O crime não tem horário para acontecer, e esses crimes acontecem principalmente aos finais de semana e à noite”, informa.

Segundo ela, isso obriga a vítima a voltar para casa, muitas vezes para o mesmo ambiente de violência, especialmente quando não possui recursos para se deslocar novamente ou quando precisa conciliar a rotina com os filhos. “Essa fragmentação no atendimento acaba fazendo com que muitas mulheres desistam de buscar ajuda, permanecendo expostas à violência”, ressalta.

A falta de uma delegacia 24 horas em Joinville

O delegado Lucas Magalhães reconheceu que, embora a Dpcami conte com uma estrutura relativamente bem organizada e uma equipe dedicada, ainda está distante do cenário ideal. Segundo ele, a quantidade de funcionários é insuficiente para dar conta da demanda, que envolve milhares de registros de ocorrência por ano.

Ele explicou que a falta de efetivo impacta diretamente na capacidade de atuação da delegacia, principalmente no que diz respeito à investigação dos casos. Além disso, apontou que há dificuldades estruturais, como a ausência de verba própria para manutenção, o que obriga a unidade a buscar apoio na iniciativa privada e em instituições que se sensibilizam com a causa, a fim de superar essas limitações.

Polícia Civil/Divulgação

Segundo ele, a possibilidade de funcionamento da Dpcami por 24 horas também esbarra no problema da falta de efetivo. O delegado explica que, com o efetivo atual, é inviável implantar um regime ininterrupto de atendimento, pois seria necessário deslocar parte da equipe de investigação para o plantão. Isso, segundo ele, comprometeria drasticamente as investigações, motivo pelo qual a delegacia ainda não adota esse modelo de funcionamento.


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Palácio Episcopal foi construído para primeiro bispo de Joinville, inspirado no estilo barroco:

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