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Mais de 18 mil famílias aguardam na fila por programas de habitação em Joinville

Data mais antiga de espera é de 1999; moradores relatam lutas durante tempo de espera

Do alto do Morro do Borba, o cheiro atraente do café recém passado atravessa o portão de Mariusa Aparecida de Lima, a Mara. Sentada à mesa, ela veste seus óculos e passa a folhear papéis importantes que guarda há anos dentro de uma pasta.

Sabrina Quariniri/O Município Joinville

Entre os documentos, a moradora reserva uma ação civil pública de 2007, que determinou a saída das 40 famílias que vivem na localidade. A principal justificativa da Justiça é de que o local é uma ocupação que fica em Área de Preservação Permanente, a APA Dona Francisca, e corre risco de desmoronamentos.

Mara vive no local há 21 anos e está cadastrada para receber um dos programas habitacionais do município desde 2008. Tal como ela, entre cadastros atualizados e desatualizados, mais de 18 mil famílias aguardam na fila por um dos serviços ofertados pela secretaria de Habitação de Joinville.

Assim como os outros moradores da ocupação, Mara garante que pagou pelo pedaço de terra onde vive e considera a decisão injusta.

“Tanta gente na rua e nós lutando pra ficar dentro do que é nosso”, se indigna, segurando contrato que atesta a compra das terras, em 2002. Antes disso, ela vivia de aluguel na mesma localidade.

Raízes no morro

Em 2015, após duas tentativas de despejo, a Defensoria Pública do Estado (DPE) entrou com uma ação e a Justiça ordenou que a prefeitura realocasse as famílias. No entanto, para Mara, deixar o morro é como desprender de suas raízes e perder tudo que foi construído abaixo de muito suor.

“Dezoito mil famílias na fila e ainda querem desabrigar mais gente? Eles querem realocar 40 famílias que estão colocadinhas em seus lares, que investiram uma vida aqui. Tem pessoas aposentadas, que pegaram seu dinheirinho e empregaram tudo aqui. É o nosso lar, é nosso bem. É uma coisa preciosa”.

O Morro do Borba ou rua Pentecostal, como cadastrada na prefeitura, é uma via estreita e cheia de pedregulhos que doa aos interessados duas possibilidades de cenário: o verde das árvores em direção às casas e o cinza da BR-101 com vista para os prédios, onde os moradores da localidade vivem às margens.

Sabrina Quariniri/O Município Joinville

Atualmente o Morro do Borba está em evidência, seja pela briga travada pelos moradores que buscam a regularização fundiária e melhorias de infraestrutura ou pela prefeitura que negocia a realocação com aporte da Justiça.

Histórico

A localidade em Pirabeiraba existe desde a década de 1970. Mara calcula que pelo menos 26 das 40 famílias teriam comprado seus lotes de João Borba, antigo morador. Os outros lotes teriam sido vendidos por outros dois proprietários, também citados na ação civil pública.

O documento menciona que João Borba teria invadido o terreno e passado a vender, de forma irregular, lotes da região. O morador se defendeu, à época, dizendo que a própria prefeitura o havia incentivado à venda de pedaços de terra para conseguir instalar energia elétrica no morro.

O contrato de duas folhas mostra que Mara pagou o valor de R$ 10 mil pelo terreno. “Quando viemos pra cá não tinha esse negócio de área de preservação ambiental, fizeram isso depois”, argumenta. O decreto municipal que dispõe sobre a criação da APA Dona Francisca é de março de 1997.

Sabrina Quariniri/O Município Joinville

Risco de deslizamentos

Um laudo geológico realizado em 2007, anexado ao processo, cita que não há evidências na localidade que apontem para um grande deslizamento na área, mas existem “pontos de instabilidade não satisfatória”.

O documento conclui ser necessário um amplo sistema de drenagem na região e a proibição de novas instalações de moradia. As casas presentes em talude deveriam ser demolidas e as famílias levadas para área segura, fora da encosta em questão, aponta o laudo.

Sabrina Quariniri/O Município Joinville

“Na época, a advogada do CDH (Centro de Direitos Humanos), através do Ministério Público, contratou geólogos para analisarem a área aqui. Lembro que era um dia de muito calor, até fiz uma limonada pra eles. Aí eles falaram pra mim: ‘dona Mara, isso aqui não tem risco nenhum, nunca vai ter risco de desmoronamento’”, lembra a moradora, que não soube apontar onde está o laudo.

Ela alega que um novo estudo foi realizado por parte da prefeitura, que considera, atualmente, toda a área como sendo de risco. Conforme a prefeitura, o laudo geológico mais recente foi realizado em maio deste ano.

“SE FOSSE DE RISCO MESMO, A GENTE TINHA INTERESSE EM SAIR, NEM QUE FOSSE PRA PAGAR ALUGUEL. ACHA QUE SERÍAMOS TÃO INSANOS EM FICAR?”

Mara conta que, após a decisão que exigiu a saída dos moradores, o local não recebe melhorias de infraestrutura. Conforme a moradora, no entanto, todas as casas contam com serviços de energia elétrica, água e serviço de Correios de forma legal.

Entre os questionamentos que rondam a cabeça de Mara, um não a deixa dormir direito: “por que tanta vontade de que a gente saia daqui?”.

Déficit habitacional pode ser maior

Rodrigo Andrioli, secretário de Habitação do município, afirma que, das mais de 18 mil famílias cadastradas, pouco mais de 10 mil estão com suas informações atualizadas.

Isso ocorre, segundo ele, porque em algum momento essas pessoas conseguiram lugar para morar ou mudaram de município, por exemplo. A linha de corte leva em consideração a atualização dos dois últimos anos.

Andrioli explica que a carteira de serviços de habitação é composta por unidades habitacionais verticais, que são os apartamentos, as horizontais, que são terrenos com áreas de edificação, os lotes urbanizados, e o programa de melhoria habitacional, benefício que ajuda na qualificação de residências em condições precárias.

Sabrina Quariniri/O Município Joinville

Conforme os critérios estabelecidos por lei, de acordo com Andrioli, a fila considera a situação social do solicitante, não a ordem cronológica. Ou seja, o tempo de espera não é levado em consideração. Por isso tem pessoas que aguardam há mais de 20 anos na fila.

O secretário aponta que este não é um problema específico de Joinville, mas também de todo país. “A gente sabe que esta fila é de pessoas que estiveram aqui em algum momento, ergueram a mão e buscaram o cadastro. Mas a gente acredita e sabe que pode ser ainda maior”, expõe.

Regularização fundiária

Com famílias à espera desde 1999, o secretário afirma que a prefeitura tem trabalhado para diminuir este déficit habitacional. No entanto, desde 2014, após a entrega do empreendimento Rúbia Kaiser, no Jardim Paraíso, ele menciona que as ações de interesse social por parte do governo federal estão paralisadas na cidade. “Tivemos um lapso temporal”, define.

O secretário diz que a prefeitura já aderiu ao programa Casa Verde Amarela, mas faltam algumas regulamentações para que os serviços passem a ser ofertados.

Neste ínterim, o município produziu cerca de 140 lotes urbanizados na região do Cubatão e desprendeu, no ano passado, mais de R$ 600 mil em programa de melhoria habitacional. Neste ano já está orçado mais de R$ 1 milhão para o mesmo programa, confirma o secretário.

Para Andrioli, a regularização fundiária é o “carro-chefe”. Há 23 mil lotes com características urbanas em áreas irregulares na cidade, segundo o secretário. “Quando a gente traz isso também para o ordenamento territorial, essas pessoas que hoje não teriam sua moradia, não têm o direito de posse, passam a ter a sua propriedade”, pontua.

Certificado de regularização fundiária

Helena Soeli de Lima Souza, 61, mora em Joinville há 21 anos e foi contemplada com certificado de regularização fundiária no mês de junho, junto a outros 73 moradores dos bairros Jardim Paraíso e Aventureiro.

A cearense deixou sua terra natal junto de seus dois filhos e o marido em busca de emprego, já que as condições não eram favoráveis no estado. “Viemos pra Joinville morar num barraquinho, depois construímos uma pecinha de material, mas nem luz tinha. Aos poucos fomos conquistando, com medo de perder o que a gente investiu em cima, porque sabia que não era da gente”, conta.

Entre os possíveis despejos e receios de perder o único local que tinha para morar, a aposentada conseguiu o tão desejado documento. Agora, respira aliviada.

“Estou pulando de alegria, esperava há muito tempo”, comemora.

Pensado para todos

O secretário de Habitação diz que os programas são pensados para atender a necessidade de todos. Inclusive, o pretendente chamado passa por uma entrevista com a equipe de gerência social da pasta que busca entender seu perfil socioeconômico.

Caso a demanda não se encaixe com a disponibilidade do programa, o solicitante volta para a fila e dá lugar aos próximos.

Todos os programas são pagos e, dependendo da renda, a família pode receber até 85% de subsídios. O secretário diz que o valor pode ser parcelado em até 30 anos. A média mensal das parcelas é de R$ 70.

“É irrisório. A gente não está falando nem de um botijão de gás. Poder ter o direito de uma casa própria é digno, com uma escritura, que não é só pra este momento, é para o futuro. Para poder levar nessas situações irregulares, inclusive, equipamentos de infraestrutura essencial, como água, energia elétrica, coleta seletiva”.

Ameaças de despejo durante a pandemia

Conforme mapeamento realizado pela prefeitura, Joinville possui 23 mil lotes irregulares, considerando áreas públicas, privadas, perímetros urbano e rural. Christina Floriano dos Santos, 33, vive em uma ocupação no bairro Fátima há 11 anos, junto a famílias indígenas.

Sabrina Quariniri/O Município Joinville

Em março deste ano, em meio à pandemia da Covid-19, a comunidade onde vive foi ameaçada de desalojamento durante uma tentativa de reintegração de posse do órgão municipal.

O local em questão se trata de uma área de preservação permanente e também é alvo de uma ação civil pública. Uma máquina retroescavadeira, policiais e representantes de órgãos públicos estiveram presentes na ocasião.

Sabrina Quariniri/O Municipio Joinville

No começo de junho, no entanto, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, suspendeu, pelo período de seis meses, ordens ou medidas de desocupação de áreas que já estavam habitadas antes de 20 de março de 2020, quando foi aprovado o estado de calamidade pública.

Andrioli encara como digno e legítimo o direito à moradia, inclusive, cita ser um direito assegurado pela Constituição Federal. Mas faz ressalvas acerca do tema.

A gente preconiza a liberdade com responsabilidade. Está intrínseco dentro do indivíduo, ele é o agente da mudança. Acaba que situações assim podem gerar algum entendimento equivocado por parte das pessoas de má fé. Outros a gente sabe que estão em situações de realmente vulnerabilidade e aquele teto é somente o que tem. É difícil dissertar sobre o tema, porque a gente acaba colocando tudo no mesmo balaio”, problematiza o secretário.

Christina está há dez anos esperando na fila por um dos programas habitacionais. Durante esses anos, conta, quatro dos seus últimos tetos caíram sobre sua cabeça. “Eram construídas com madeira velha que apodrecia com o passar do tempo, por ser área de mangue”, conta.

A última vez, em janeiro, ela dormia com os três filhos quando, durante a madrugada, parte do teto do quarto onde a família estava cedeu. Por sorte, ninguém se feriu. Com isso iniciou a construção de uma nova casa, desta vez, de alvenaria, mas a obra foi embargada pela prefeitura, no início do ano. A construção foi retomada dias após a ação.

Desempregada e mãe de três filhos — um menino de 16, outro de 14 e uma menina de 10 —, ela sustenta a família com R$ 357 do Bolsa Família e recebe doações de cesta básica. Ela diz que não tem ido atrás de emprego por medo de deixar os filhos sozinhos e perder a guarda.

Christina foi morar na comunidade após não ter mais condições de arcar com aluguel. “Não é uma escolha da gente estar aqui, é nossa única opção. Se pudesse escolher estaríamos em lugares melhores, mais seguros, com rua asfaltada. Decepção com o governo que a gente põe lá, que não tem solidariedade. Querem botar todos no abrigo, mas queremos a nossa casa”, defende Christina.

Ocupação descontrolada

Charles Henrique Voos, mestre em urbanismo e doutor em sociologia, afirma que a ocupação descontrolada do espaço urbano pode explicar o início da crise habitacional na cidade.

Ele aponta que Joinville é cercada por mitos e critica quem defende que o problema começou quando os migrantes desembarcaram na cidade em busca de trabalho, gerando, assim, uma “ocupação desordenada”.

Para o sociólogo, o termo remete a uma falta de ordem, o que não seria o caso. “Sempre tivemos leis e normas, então falta de ordem não foi. Costumo dizer que tivemos uma “ocupação descontrolada”. Existem várias pesquisas mostrando como essas áreas foram sendo ocupadas sem o devido controle estatal”, explica.

Com a chancela do poder público, aponta Voos, o mercado imobiliário passou a vender lotes em áreas de manguezais e outras regiões ambientais frágeis, locais esses mais distantes das áreas centrais, diz o especialista. Com isso, os mais pobres foram ocupando as regiões sul, leste e, mais tarde, oeste. Já os ricos, centro e norte.

“Como tivemos um controle muito fraco e um crescimento populacional absurdo, e em pouco tempo, a solução foi expandir a cidade, aumentando o perímetro urbano. O déficit começa quando o solo urbano não é igualmente repartido”, diz.  “Hoje, temos uma família, sozinha, que é dona de 5% da área urbana. Outras 39 são donas de mais 5%. Ou seja, 10% para 40 famílias (30 quilômetros quadrados) e 90% para 600 mil pessoas”, conclui.

Falta de políticas públicas

Na opinião de Voos, o déficit habitacional existente é consequência da falta de políticas públicas de acesso à moradia que possam atender a todos, além da não existência de um controle do mercado imobiliário por parte do poder público.

“Ocorre que, de maneira injusta, as políticas públicas são restritivas e não conseguem cumprir com o direito constitucional da moradia. Temos que pensar em garantir moradia a todos, sobretudo por iniciativa governamental. Enquanto houver fila de espera, saberemos que o governo não está cumprindo com a sua parte”, comenta.

O especialista também faz críticas a programas como o Minha Casa Minha Vida, do governo federal. Ele afirma que, além de não conseguir disponibilizar moradia a todos, que era seu principal intuito, a política serviu para aumentar o preço da terra nas principais cidades brasileiras e dar ao mercado imobiliário um “protagonismo perigoso”, onde famílias realmente necessitadas não tiveram suas necessidades atendidas.

“E, quando tiveram, conseguiram apartamentos em lugares sem a mínima infraestrutura necessária para contemplação da vida humana”.

Como alternativa, Voos sugere regularizações e programas de urbanização de assentamentos precários, além de um controle público dos aluguéis, para diminuir a “agressividade” do mercado imobiliário.

Além disso, propõe a aplicação de medidas previstas no Estatuto das Cidades, como o IPTU progressivo, que já existe em Joinville.

“Como o mercado formal já ocupa as áreas passíveis de ocupação, cabe ao mercado informal entrar nas áreas ambientalmente frágeis. Mas fazem isso por falta de opção, já que as políticas de habitação diminuíram drasticamente nos últimos anos e o mercado imobiliário é de difícil acesso aos mais pobres”.

Enquanto não são contempladas, Mara e Christina seguem confiantes. Mara de que vai poder continuar onde está, já Christina, de mudar-se com a família para um local que ofereça condições fundamentais para a sobrevivência. A esperança segue viva nesta espera que parece nunca ter fim.

“Nuca perdi a esperança. Eu tenho fé que um dia vou ter minha casinha pela Habitação”, conclui Christina.


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