Morador de Joinville cria “engenhoca” para ajustar bolsa de ostomia ao corpo; saiba como funciona
Joinville é a cidade com mais pacientes ostomizados de Santa Catarina
César Borges é ostomizado há 29 anos. O garuvense tem 86 anos, mas mora em Joinville desde a adolescência. Em 1993, descobriu um câncer de intestino que mudou completamente a vida dele e da família. Com a criatividade e buscando aumentar a qualidade de vida, César desenvolveu dispositivos para reduzir a troca da bolsa de fezes e as dores da condição.
O que é pessoa ostomizada?
O assunto ganhou destaque quando o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) precisou utilizar uma bolsa de ostomia durante alguns meses em 2018. Assim como no caso do político, a maioria das ostomias é reversível. Segundo a especialista Sheila Cristina Parolim, em cerca de 80% dos casos é possível reverter a operação.
Isso porque existem tipos de ostomias. As principais são colostomia, ileostomia e urostomia. Todas têm o objetivo de formar um canal alternativo entre o corpo da pessoa e o exterior, para eliminação de fezes, urinas e auxílio na respiração, normalmente por uma bolsa.
Conforme explica Sheila, a causa mais comum que leva um paciente a precisar desse canal alternativo é o câncer, mas não se limita a ele. Bebês que nasceram com algum tipo de má formação podem precisar do auxílio de uma bolsa de ostomia por um tempo.
Segundo a enfermeira, esses pacientes são considerados deficientes, pois têm uma amputação de uma parte do corpo, nos casos mais comuns, o intestino. Como as fezes não chegam ao ânus para o descarte natural e controlável, os pacientes conquistaram o direito de acessar as bolsas que coletam os resíduos.
Embora a condição de César não seja reversível, ele encontrou outras formas de ter uma vida mais “normal” possível. O primeiro desafio era a forma que as fezes saiam. Por ter retirado uma parte considerável do intestino, os resíduos não ficam tempo suficiente no organismo para formar textura de fezes. “Eu bebia alguma coisa e já ia para a bolsa”, relembra Cesar.
Para manter os líquidos mais tempo no corpo e acabar com os cálculos renais que lhe geraram muitas dores, ele recorreu à banana-maçã. A ingestão do alimento ajudou o corpo dele a direcionar os líquidos para o rim. “Esses detalhes são fundamentais na vida da gente”, conta. Desde que descobriu a função da banana, Cesar come uma todos os dias.
Como funciona uma bolsa de ostomia?
A criação de um estoma é um procedimento cirúrgico que cria um orifício na parede abdominal ou na traqueia, de maneira definitiva ou provisória. Neste orifício é colado uma bolsa que faz a coleta dos resíduos.
Essas bolsas são distribuídas pelo município e compradas pelo estado. Em Joinville, a concentração desses equipamentos fica na Policlínica do Boa Vista, onde a enfermeira especialista em estomaterapia atende os pacientes.
“O paciente chega aqui nervoso”, conta a enfermeira. Ela explica que a família costuma vir no primeiro atendimento, pois muitas vezes o ostomizado está passando por um procedimento médico, como quimioterapia e radioterapia. Além disso, todos chegam com muitos medos.
“As pessoas têm medo de não ter mais uma vida social”, explica Sheila. Ela cita exemplos de pacientes que jogavam futebol antes da cirurgia e aparecem na policlínica acreditando que nunca mais poderão entrar em quadra. Entretanto, existe uma bolsa protetora para essas ocasiões.
Outro medo comum, segundo a enfermeira, é o de não poder mais fazer sexo. “Não pode fazer o canguru perneta, mas vai achar outras posições”, brinca. Dessa forma descontraída que os ostomizados vão se soltando e se sentem confortáveis com a enfermeira.
“Aqui é o momento em que eles se sentem bem, porque eu não tenho nojo”, Sheila explica. “A nossa cabeça cria monstros, quanto mais informação esse paciente tiver, melhor será adaptação”, conclui.
Adaptação
Professor Pardal, como Sheila chama Cesar, teve muitas dificuldades no processo de adaptação. Como ele realizou a cirurgia há mais de duas décadas, não havia muitas informações disponíveis e os direitos não estavam garantidos. Ele conta que ficou anos sem entender direito como funcionava a condição, mesmo já usando as bolsas.
Sempre muito curioso, aos poucos ele foi descobrindo sobre a estomia, a bolsa de ostomia e as limitações. Durante um tempo, comprava as bolsas de uma pessoa em Joinville, até que decidiu entrar com um pedido no Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC).
A partir da solicitação, o MP-SC intimou o estado de Santa Catarina a fornecer bolsas para ele. De uma vez só, ele ganhou 365 bolsas. Entretanto, as coisas não ficaram muito mais fáceis. Devido à doença, César precisou se submeter a seis cirurgias abdominais. Esses cortes, sempre no mesmo lugar, formaram deformações no corpo dele e dificultavam a fixação da bolsa.
O estopim foi em uma sessão de fisioterapia. Enquanto realizava os exercícios, a bolsa descolou e os resíduos começaram a escorrer. César conta que precisou de diversos panos para se limpar. “Aquilo me causou um aborrecimento muito grande”, recorda.
Após a situação, marcou uma consulta médica para receber orientação sobre como evitar os vazamentos. A resposta não foi satisfatória. O médico de César não tinha solução para o problema. Insatisfeito, ele começou a pensar e surgiu a ideia de montar uma prensa.
A prensa
“Eu sempre fui uma pessoa que busca criatividade”, confessa. Para a ideia funcionar, ele precisaria fazer um molde do abdômen. Montou uma caixa e cobriu o estoma com um plástico. Com a ajuda da esposa, jogou gesso no local e esperou secar. A partir daquele molde, César montou três prensas, por onde as bolsas ficam por 21 dias até serem coladas na barriga dele.
Dessa forma, a bolsa fica com o formato exato para encaixar no abdômen dele. “Ofereci para o pessoal da associação [Associação dos Ostomizados de Joinville], mas ninguém se interessou”, conta. Embora tenha criado um dispositivo que melhore o uso das bolsas, todo o processo dá trabalho, de três a quatro horas por semana.
Mas ele diz que vale a pena. “Eu prefiro perder essas horas e ganhar dias lá na frente”, pontua. Enquanto outros pacientes ficam de três a quatro dias com uma bolsa, César mantém por sete. Além de gastar menos material, ele acredita que essa rotina melhora a qualidade de vida, já que repete o processo menos vezes, reduzindo as chances de machucar a pele e colar a bolsa de qualquer forma.
Como a prensa funciona?
Com a ajuda de linhas guias desenhadas em uma tábua de madeira, César posiciona a bolsa na extremidade inferior da prensa para garantir que ela vai encaixar corretamente no abdômen e direcionar a saída para baixo.
Quando a bolsa está posicionada, o paciente encaixa a parte do molde. Com o auxílio de arruelas e porcas borboletas, ele aperta até não girar mais. Com o passar dos dias, o plástico da bolsa vai adquirir o formato da barriga de César, até ser colado nele.
Como ele tem três prensas, assim que uma bolsa é utilizada, ele passa a outra para a prensa recém liberada, e assim por diante. No total, cada bolsa fica cerca de 21 dias prensada.
Dores e sequelas
O estoma em si não causa dores, é o que explica a enfermeira Sheila. “O estoma é uma boquinha que não tem terminação nervosa, o que dói é a pele ao redor”, explica. Por isso, ao colar a bolsa, os pacientes utilizam um pó que forma uma espécie de camada protetora para a pele.
Mesmo assim, César ainda se sentia desconfortável. Quando ele levantava, a bolsa retraía e acabava entrando no estoma. A fricção causada pelo contato da pele com o plástico e a retração dos resíduos geravam um incômodo enorme para ele.
Depois de muito pensar, chegou a conclusão que precisava criar uma entrada de ar, assim a bolsa não criaria o vácuo. Foi assim que surgiu a válvula, outra invenção voltada a melhorar a qualidade de vida do ostomizado.
Assista à montagem da válvula:
Direitos e desafios
Em Joinville existem cerca de 450 pessoas ostomizadas, de acordo com Sheila. Por ser o maior polo do estado de pacientes ostomizados, Joinville conta com uma equipe de enfermagem especializada e uma associação de pacientes. Entretanto, apenas dois banheiros são voltados a pessoas ostomizadas na cidade, um na rodoviária e outro no aeroporto.
Embora o ostomizado tenha os mesmos direitos que outras pessoas com deficiência, a realidade de uma condição “invisível” é outra. Sheila explica que a insegurança dos pacientes em sair na rua é passar por situações de vazamento.
“Já tive paciente que precisou pegar um quarto de hotel para se limpar, isso porque não tem banheiros direcionados para essas pessoas”, conta. Para ela, deveria haver uma lei que obrigasse estabelecimentos como shoppings, mercados e galerias a fornecer um banheiro com privada elevada. “Não custa nada, é tão simples adaptar um banheiro”, diz a enfermeira.
Para conseguir os dois banheiros na cidade, a Associação dos Ostomizados de Joinville precisou lutar pelo direito. Nestel dos Santos é um dos fundadores da instituição e foi presidente por muitos anos. Assim como César, ele tem ostomia definitiva, e por isso, adaptou os banheiros de casa. “É um bacio elevado na altura do abdômen, esvazio a bolsa e tem uma duchinha, onde lavo a bolsa, tudo certinho”, explica.
Quando ostomizados precisam esvaziar as bolsas em locais públicos, eles se ajoelham no chão. “É humilhante”, explica Sheila. Além do constrangimento, há pacientes com outras condições médicas que impedem essa subida e descida.
Embora existam desafios, Nestel conta que já foi muito pior. “Criamos a associação e fomos para Florianópolis, pois é pelo estado a compra das bolsas. Lá marcamos reunião com o secretário de Saúde”, recorda. Entre as idas e vindas, foram adquirindo direitos como isenção de IPI e os dois banheiros em Joinville.
Nestel é um exemplo de que a ostomia não impede o paciente de viver. Após o procedimento, ele teve duas filhas e até viajou para a Turquia, onde realizou um trajeto de centenas de quilômetros a pé.