Mulheres da linha de frente do combate à Covid-19 relatam rotina e desafios
Rotina exausta, cansaço mental e medo de infectar parentes são alguns dos problemas que elas administram enquanto salvam vidas
Sala branca e bem iluminada, macas enfileiradas e um corredor comprido que corta o espaço e dá acesso aos leitos. Antes de entrar neste ambiente, agudamente sonoro pelo alarme dos monitores e o apito dos respiradores, Eladinete Neto Lopes de Souza, 46 anos, saca sobre seu uniforme azul claro um avental branco descartável. À vestimenta, adiciona uma touca, um par de luvas, máscara N95 e seus óculos. Mesmo protegida dos pés à cabeça, o medo da contaminação é contínuo, mas precisa ser deixado do lado de fora do hospital.
“A UTI Covid é tudo de mais diferente que se possa imaginar. Os pacientes que chegam muito graves e não conseguem respirar sozinhos precisam ficar na posição pronada. Às vezes ficam até 12 horas sem se mexer. Pelo tempo parados, ficam com lesões no rosto e no corpo. Quem está fora, se visse esta situação, mudaria a postura de aglomeração”, desabafa a enfermeira.
Há um ano, Eladinete foi tirada do setor de pronto-socorro do Hospital Municipal São José e colocada na unidade de tratamento intensivo. A cada mês, ela reveza entre os atendimentos na UTI geral e UTI Covid-19. Em meio a seus plantões noturnos de 12 horas, divide sua rotina diária entre os cuidados com as filhas, de 8 e 11 anos, e os afazeres de casa.
Cansaço e estresse
Desde o início da pandemia, o trabalho é administrado sob o regime de estresse e cansaço mental. Com profissionais de diferentes áreas sempre a postos, a incerteza e a rapidez na tomada de decisões fazem parte do ambiente da UTI.
“Toda a equipe de profissionais, médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, fica o tempo todo trocando informações. Em questão de minutos, o paciente, que respira de barriga pra cima, pode ficar instável e precisamos virá-lo, colocá-lo na bomba de infusão e submetê-lo a medicações pesadas e sedação”, conta Eladinete.
Na tentativa de aliviar a tensão, a enfermeira caminha pelos corredores quase que vazios do hospital e faz uma pausa para um café. A expressão cansada dos colegas que tromba pelo caminho entrega o sentimento mútuo de exaustão.
“Em uma noite de plantão, fui tomar um café e reparei no olhar cansado da copeira. O cansaço que a gente está sentindo é o mais difícil de recuperar, porque é mental. O corpo a gente dorme e acorda melhor. Mas quando deito na minha cama, penso nos pacientes, ouço o barulho dos aparelhos de infusão. Se minha filha espirra, já fico em alerta”, expressa.
Experiência na pele
Eladinete é pós-graduada em terapia intensiva e conta que, desde que começou a atuar na UTI Covid, seu maior medo sempre foi o de levar o vírus pra casa. Seus cuidados foram reforçados a cada dia que passava, acompanhando o aumento no quadro de colegas contaminados.
No fim de janeiro, recebeu uma ligação que mudou totalmente sua visão sobre o ambiente de UTI e a fortaleceu como profissional. No entanto, a primeira reação foi a de desespero.
“Um belo dia, de surpresa, minha irmã me ligou e disse que tinha testado positivo para coronavírus. Fiquei em estado de choque. Dois dias após o diagnóstico, ela foi intubada”, conta a enfermeira.
Há 33 dias na intubação, Eliete, de 39 anos, sofre de obesidade leve. Eladinete conta que a doença se desenvolveu de forma aguda e agressiva na irmã, que deu entrada em um hospital particular da cidade com dificuldade de respirar. Este quadro, segundo ela, tem sido cada vez mais comum entre os pacientes.
“Quando eu soube que ela foi intubada fiquei desnorteada. Veio à mente tudo o que eu vejo lá dentro (da UTI) e sabia que a minha irmã iria passar. As posições, as medicações. Lembro que naquela mesma noite eu tinha plantão. Entrei naquela sala, mas não consegui ficar uma noite toda. Entrei em pânico. Olhava para os pacientes e via a minha irmã naqueles leitos. Chamei a supervisora e falei que precisava ir para casa”, narra.
Atualmente, mesmo sedada, o estado de saúde de Eliete é estável. A enfermeira conta que a experiência vivida com a irmã, apesar de desesperadora, a ajudou a desenvolver um olhar mais aguçado com relação aos pacientes.
A primeira visita feita a irmã foi com 31 dias de internação. Com sedação leve, Eliete reconheceu Eladinete. Isso a encher de esperança.
“Antes de conhecer uma UTI, pela gravidade, sempre achei que os pacientes estavam todos sujeitos a morrer. Mas todos estão ali dando o seu máximo, lutando pela vida. Mesmo sabendo que tudo pode acontecer, que correm um risco eminente de morte, a UTI é um tratamento intensivo onde todos têm chance de vida”, diz.
A última barreira
Evelin Wossgrau, 30, é gerente de enfermagem do Hospital Geral Joinville, do sistema Hapvida, e, além de ficar responsável pela gestão da unidade, também atua na parte assistencial, visitando pacientes da emergência e, quando necessário, participando de atendimentos.
Com experiência de 12 anos na área da saúde, Evelin afirma, seguramente, que os enfermeiros são responsáveis por fazer 80% do hospital girar.
“Se a gente falha, o paciente sente. Somos a última barreira antes de alguma coisa acontecer, precisamos de atenção redobrada”, afirma.
Durante a pandemia, com a obrigatoriedade de isolamento, os profissionais intensificaram ainda mais a tarefa de fazer a ponte entre pacientes, médicos e familiares. A última conversa do paciente, em muitos casos, é com os enfermeiros. Por isso Evelin reforça à equipe a importância de agir com sensibilidade, mesmo em meio ao caos.
“O paciente de Covid tem um perfil diferente. Normalmente um paciente de UTI de internações comuns entende melhor a situação, mas como a Covid repercute de uma forte muito grande, quando chega no momento de internar, a gente encontra muito medo. Os pacientes têm quadro de ansiedade, ficam depressivos, se sentem sozinhos, ficam chorosos. Antes a gente lidava mais com questão técnica, hoje, além de dar suporte na parte técnica, acaba tendo a carga emocional de dar este amparo pro paciente, que está sozinho, com a família longe”, afirma.
Como gestora, além do hospital de Joinville, Evelin precisou também viajar para outros estados do país que possuem unidades da rede Hapvida, a fim de dar suporte, abrir novos letos e treinar equipes recém-contratadas pelo aumento da demanda.
Carga dobrada
Evelin conta que foi muito comum ver, neste último ano, profissionais da saúde redobrando suas cargas horárias e trabalhando em mais de um lugar para atender a população. Pela sobrecarga, mesmo mantendo todos os cuidados, profissionais adoeceram ou tiveram de lidar com familiares doentes.
Nesta luta diária, a parte mais complexa é não se deixar abalar pelas situações vivenciadas diariamente. Em meio a tantas mortes, se agarram na vitória dos pacientes que conseguem retornar para suas famílias.
Não deixar se abalar
“A gente sempre tem uma experiência que marca, todos os dias. É impossível não sentir, somos pessoas. Mas todo profissional precisa se blindar um pouco, até porque senão adoece ao ponto de não conseguir cuidar. Quando a gente escolhe cuidar, a gente espera que as pessoas saiam bem, o óbito não é uma coisa que a gente aceita. Mas há muitos pacientes, que mesmo muito graves, se recuperam e voltam para casa, isso nos fortalece”, conta.
Lá em março de 2020, quando tudo começou, Evelin não imaginou que a pandemia fosse se estender por tanto tempo. De lá pra cá, o cenário só tem piorado, não só pelo colapso na saúde e o aumento de pacientes, mas segundo ela, pelo cansaço mental dos profissionais da saúde e da população no geral.
“As pessoas perderam as perspectivas, a esperança, os planos estão parados. Isso repercute na saúde mental. Já está acontecendo aumento de casos de depressão, crises de ansiedade e tentativas de suicídio”, aponta.
Apesar deste contexto, a enfermeira não se deixa influenciar. “Não venho trabalhar com medo, venho com vontade de fazer as coisas melhorarem. Meu receio é de não dar o suporte que minha equipe precisa. Sou apaixonada pelo que eu faço, me dá muito prazer acordar todos os dias e trabalhar. Mas o maior medo é de alguém que a gente ama se agrave”, completa.
Adaptação
Antes da pandemia, o Bethesda era um hospital de retaguarda e não possuía leitos de UTI. Com a chegada da doença, a unidade adaptou 30 leitos para tratamento a pacientes com coronavírus.
A médica Karin Grubhofer, 43, conta que além de novos leitos, a rotina na unidade mudou após o aumento no número de pacientes e na complexidade no quadro desses pacientes, mais sujeitos ao óbito. Mesmo que a morte faça parte da rotina dos médicos, com a pandemia, isso foi intensificado, assim como a cobrança dos familiares.
Para estreitar esta relação, Karin conta que a equipe conversa diariamente com a família para repassar informações diárias sobre o paciente internado, promovem videochamadas e, em alguns casos, permitem visitas aos pacientes mais graves.
“A gente se coloca, inevitavelmente, no lugar do doente e da família que não consegue ver, abraçar e se despedir. Mas nós apostamos muito na transparência e humanização como formas de lidar melhor com a situação”, explica.
Revolta e frustração
A médica diz que os leitos de UTI no Bethesda estão lotados desde o dia em que foram abertos. Conforme o último boletim do governo do estado, a ocupação dos leitos públicos é de 100%. Na última semana, a lotação máxima foi atingida em pelo menos três ocasiões após a confirmação da nova variante no município.
“É frustrante demais falar pra uma família que precisa aguardar no pronto-socorro um leito de UTI porque não há vagas. Te perguntam e você não saber dizer quando que irá abrir”, desabafa.
Bares cheios e praias lotadas contrastam com a crise vivida pela saúde pública e famílias desesperadas à espera de boas notícias. Diante disso, o sentimento dos que atuam na linha de frente não poderia ser outro: de revolta.
Karin acredita que a Covid-19 não será totalmente exterminada, mas se tornará uma doença endêmica, como gripe, malária, febre amarela, e tantas outras doenças que antes não tinham cura. “A esperança maior tem que ser em Deus mesmo, na parte da ciência estamos fazendo todo o possível”, finaliza.
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