Trabalhadores de Joinville relatam perseguições durante a ditadura militar
Operários foram demitidos, perseguidos e ameaçados por reivindicarem melhores condições de trabalho, liberdade de expressão e uma vida mais digna
Em 1º de abril de 1964 o então presidente da república João Goulart foi deposto. O ato deu início a ditadura militar que durou até 1985. O período marcou a vida dos trabalhadores que resistiram às imposições do regime em Joinville. Operários foram demitidos, perseguidos e ameaçados por reivindicarem direitos, liberdade de expressão e uma vida mais digna.
Francisco João de Paula, hoje com 67 anos, foi um deles. Atualmente aposentado, trabalhou como operário. Chico, como é conhecido, sofreu na pele a perseguição da ditadura.
Vigiados pelos patrões, os funcionários das empresas da cidade não podiam participar de qualquer grupo que fosse considerado subversivo. Isso incluía movimentos de greves e paralisações, conta o trabalhador. Nem mesmo as missas ficavam de fora. Na época, muitos participavam das Comunidades Eclesiais de Base (CEB).
O grupo era ligado à igreja católica, mas era acusado de aproximação com o marxismo. Isso porque falavam contra a ditadura, discutiam a exploração vivida pela classe trabalhadora e se organizavam em busca de salários melhores e condições dignas de trabalho, “já que muitos chegavam a adoecer nas empresas”, lembra Chico.
Foi por participar das reuniões das CEBs que ele foi demitido da Tupy, no fim dos anos 1970, durante a ditadura. O aposentado se recorda que, em uma noite, alguns colegas viram uma kombi da fundição passar pela igreja e no dia seguinte, estava sem emprego. “Você está incitando o pessoal à greve”, ouviu de um responsável na fundição.
“A gente só tinha o direito de trabalhar para eles, que diziam o que era certo e errado. Nós produzíamos para eles, então queríamos participar dos lucros.”
Além de sofrer com a demissão, Chico foi colocado em uma lista do sindicato patronal e teve a carteira de trabalho assinada de vermelho. Segundo ele, este era um código entre os empresários, um alerta para que as fábricas não contratassem aqueles trabalhadores. De fato, depois do episódio, Chico não conseguiu mais atuar na indústria.
Para não sofrer a mesma perseguição que o marido, Lucimar Boettcher de Paula, 63 anos, aposentada, lembra que ia entregar panfletos de boné, máscara e óculos de sol. Desta forma, podia evitar ser reconhecida e, consequentemente, demitida.
Buscando condições melhores de trabalho, o direito à greve não era respeitado, afirma Lucimar. Nos anos 1970, uma cunhada foi demitida do Grupo Hansen por ter participado de uma paralisação. Para manter o emprego, a trabalhadora negou que fez parte do movimento, mas, como eram vigiados, foi fotografada na ocasião e acabou sendo demitida.
Lucimar e Chico, participantes da CEB, contam que, mesmo sendo perseguidos e coagidos, eram encorajados a continuar na luta contra a repressão. “Meu pai dizia que a gente tinha que obedecer o governo, o patrão. Mas fomos com o padre Luiz Fachini, que nos encheu de coragem. A força está em nós”, fala Lucimar, com orgulho.
Perseguição na Igreja
Quem conheceu padre Luiz Fachini, conheceu também seu projeto com as cozinhas comunitárias, iniciado em 1994, e que atendeu milhares de pessoas, principalmente crianças carentes da região de Joinville.
O que muitos desconhecem é que, sempre ligado aos trabalhos sociais, o sacerdote também sofreu a repressão da ditadura. Chamado de padre vermelho, Fachini foi perseguido por ser o precursor e liderar as CEBs na zona Sul de Joinville. Em suas pregações falava favor dos pobres, oprimidos e dos trabalhadores.
Padre Fachini foi chamado de subversivo, teve materiais de evangelização apreendidos e recebeu uma ameaça de morte. Foi em dezembro de 1978, quando ganhou um cartão pelo correio. O remetente era o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que desejavam ao padre “um péssimo natal e que se realize no ano de 1979 nosso confronto final.”
Após o recebimento do cartão, os participantes da igreja e das pastorais sociais passaram a acompanhar o padre em todos os lugares: em casa, durante as missões, nas visitas aos bairros próximos. “A juventude destemida se organizou para protegê-lo. Guardavam a capela, onde ele morava, onde ele ia. Não derrubaram ele”, afirma Chico, emocionado.
Durante as noites, por exemplo, organizavam vigílias para garantir a segurança de Fachini. Lucimar lembra que os colegas contavam que, sempre que um carro passava pela casa do padre, se tremiam de medo, mas seguiam firmes.
Hoje, o casal olha com orgulho para a história que ajudaram a construir na cidade, junto das pastorais, das CEBs, dos trabalhadores e do padre Luiz. “O mundo avançou com a coragem desse povo”, conta Chico, que derrama lágrimas ao lembrar do período.
Comissão Municipal da Verdade
Os episódios de perseguição e violência sofridos em Joinville foram resgatados durante o trabalho realizado pela Comissão Municipal da Verdade (CMV), em 2014.
Sobre a época, o historiador e membro da CMV Maikon Jean Duarte explica que a atuação das grandes associações empresariais foi muito importante para manter a ordem no período.
Responsáveis por ajudar a manter os trabalhadores “na linha” durante os anos de chumbo, empresários foram beneficiados e receberam financiamento do governo militar. A Comissão apurou que, a Fundição Tupy, por exemplo, chegou a crescer 600% durante o período, com ajuda dos militares.
Com o papel de fazer de Joinville a cidade da ordem e do trabalho, donos de fábricas passaram, nas palavras de Duarte, a perseguir e coagir funcionários, principalmente aqueles que agitavam os colegas em busca de melhores condições de trabalho e salário. O episódio de demissões foi citado no relatório final da Comissão Nacional da Verdade.
“No estado catarinense ocorreu um caso extraordinário de intervenção direta do Exército no interior da empresa, quando esse acampou em uma sala especial dentro da Fundição Tupy, em Joinville, mediante acordo com a empresa, e ficou usando suas instalações por 20 anos. Segundo depoimentos de presos políticos de Joinville, a direção da empresa possuía uma clara postura de apoio à repressão política na região”, diz o texto.
Além de perseguições, a CMV também apurou outras violações dos direitos humanos durante a Ditadura Militar em Joinville. Em 1975, por exemplo, foi realizada em todo o estado catarinense a Operação Barriga Verde. Na época, diversos militantes da região foram presos e torturados pelo regime. Segundo o historiador, o objetivo era desarticular setores da esquerda desarmada.
“Uma marca bem profunda da ditadura. Porque criou uma estrutura jurídica violenta para aquilo que já vinha sendo praticado. Acabou com o habeas corpus e iniciou uma perseguição ultra radical por parte dos militares”, afirma o historiador.
Além das marcas no funcionamento da cidade, o historiador também lembra o contexto da política atual. Ele cita como exemplo o fato de diversas lideranças políticas atuais fazerem elogios a ditadores e torturadores do Brasil e da América Latina.
“Temos que ter a perspectiva de que nunca mais um governo ditatorial, autoritário, volte. Ou que qualquer modelo ditatorial tenha expressão em nossa sociedade”, afirma.
Empresa irá apurar atuação durante a ditadura
Procurada pela reportagem do O Município Joinville no mês de dezembro de 2020, durante as reportagens sobre os 52 anos do Ato Institucional nº 5, a Fundição Tupy afirmou que futuramente irá iniciar um processo de investigação histórica.
O objetivo é poder apurar com maiores detalhes qual foi o papel que a empresa teve durante o regime ditatorial e dar uma resposta mais completa à sociedade. Por isso, no momento, preferiram não comentar o assunto.
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