Ex-morador em situação de rua cria casa de acolhimento em Joinville; conheça história

Espaço fica no Quiriri e foi criado há dois anos

Ex-morador em situação de rua cria casa de acolhimento em Joinville; conheça história

Espaço fica no Quiriri e foi criado há dois anos

Isabel Lima

Uma nova perspectiva de vida. É isso que o projeto Céu Aberto, em Joinville, quer promover a pessoas em situação de rua. A casa fica localizada no Quiriri e foi criada há dois anos por Guilherme Antonio da Silva, que já viveu em situação de rua e sentia necessidade de um ter um espaço com acolhimento e oportunidades.

Um dos moradores do local é Leandro. Ele convive com a dependência química desde a adolescência, e acabou envolvido com o crime organizado. Aos 18 anos foi preso e lá ficou por 16 anos. Assim que terminou de cumprir pena, já era um homem de 34 anos, e precisava recomeçar.

Saiu de Curitiba (PR) e foi morar em Balneário Camboriú, no Vale do Itajaí, em Santa Catarina, onde trabalhou na distribuidora de bebidas do cunhado. Decidiu prestar vestibular para Direito e passou. No segundo semestre, trancou o curso. A dependência química ainda estava ali.

No dia 3 de fevereiro de 2022, Leandro alucinou. A soma da depressão com a alta dosagem de químicos causou um surto e ele decidiu tentar tirar a própria vida.

Ele sofreu uma queda que causou fraturas expostas nos pés e tornozelo. Após duas cirurgias na coluna e sete nas pernas, a perspectiva não era boa. Embora não tenha atingido a medula, que poderia deixá-lo tetraplégico, seria pouco provável que voltasse a andar. O osso tálus, que liga o pé até a perna, estava morto.

Selfie do Leandro na ambulância
Selfie que Leandro tirou na ambulância após cair do quarto andar | Foto: Arquivo pessoal

De cadeira de rodas, Leandro precisava de cuidados intensos. Além da nova fase de desintoxicação, ele precisava de ajuda para comer, ir ao banheiro e para realizar qualquer atividade rotineira. Nenhuma casa de apoio o aceitava e a família não conseguia acolher. Já sem esperança, ficou sabendo do Céu Aberto, uma casa de passagem em Joinville, no Quiriri, em uma área isolada pela mata e cortada pelo rio.

paisagem do rio cortando a chácara
Paisagem de dentro da chácara Céu Aberto | Foto: Guilherme Antonio da Silva/ Arquivo pessoal

Aqueles que não tem a quem recorrer

O Céu Aberto começou com as experiências de Guilherme Antonio da Silva, administrador da casa. Ele já precisou de acolhimento, então passou por diversas casas que não davam muitas oportunidades aos acolhidos.  “Além de uma melhora de saúde, uma casa de acolhimento precisa gerar uma perspectiva para a pessoa lá fora conseguir ser inserida”, ressalta Guilherme.

Por isso, deixou de lado a profissão de torneiro mecânico e passou a se dedicar a ajudar as pessoas em um formato que julgava correto. De 2020 até 2022, o Céu Aberto abrigou cerca de 250 pessoas, que costumam ficar de dois a seis meses. Guilherme até chegou a acolher mulheres e famílias, mas prefere focar somente no atendimento aos homens e garantir um serviço de qualidade e completo.

Grupo de voluntários em uma visita ao Céu Aberto | Foto: Arquivo pessoal

“É como se você está em uma estrada com dois caminhos, um você vai se acidentar, e o projeto é como uma pessoa que sinaliza o caminho”, revela Leonardo, que chegou na casa há pouco mais de dois meses.

Por ser um caso grave, ele precisa ir até o Hospital São José para fazer fisioterapia três vezes por semana. Quem faz o transporte é a equipe do Céu Aberto. Esse cuidado personalizado permitiu uma evolução no quadro de saúde. Hoje, Leonardo ajuda no preparo das refeições e faz contatos com parceiros do projeto.

Leonardo na entrada que leva até o dormitório do Céu Aberto | Foto: Arquivo pessoal

Geovane da Silva, de 48 anos, é um morador fixo na casa. Ele ajuda Guilherme com o transporte e outras demandas do projeto. Embora realize trabalhos fora dali, na área de construção civil, não pretende deixar a casa. “Minha vontade é ficar aqui, esse tratamento é pra sempre”. Essa vocação o fez membro da administração do Céu Aberto.

Após mais de um ano no projeto e quase dois sem usar drogas, Geovane enxerga um novo futuro. Vítima de um acidente de moto, ele ficou sem atendimento médico por estar em situação de rua, o que piorou o quadro de saúde. Quando finalmente encontrou tratamento no Céu Aberto, mudou a forma de ver a vida. ”Aprendi que eu tenho que saber o caminho que eu faço, como administro”.

Geovane
Geovane na frente, atrás estão outros moradores da casa | Foto: Guilherme Antonio da Silva Arquivo pessoal

Rotina da casa

O dia começa cedo para os 20 moradores do Céu Aberto. Às 6h30 todos precisam despertar. Das 7h30 até 8h acontecem os ensinos bíblicos e depois o café da manhã. Das 8h30 até 11h30 todos se dedicam às tarefas da casa, como limpeza, manutenção e preparo dos alimentos.

Depois do almoço descansam e 13h30 retornam às tarefas. Perto do final da tarde, às 16h30, finalizam todas as atividades. À noite é comum assistirem filmes. Guilherme costuma trazer uma reflexão religiosa também. Ele acredita que manter essa rotina ajuda na criação de compromissos entre os moradores da casa, que estão ali para cura e desenvolvimento.

Até pouco tempo atrás tudo era feito com ajuda da esposa, que também esteve em situação de vulnerabilidade e precisou de tratamento. Há poucos meses os dois ganharam um bebê, que mora com eles em uma casa dentro da chácara do Céu Aberto.

Guilherme e a esposa
Guilherme e a esposa | Foto: Arquivo pessoal

Pelos direitos das pessoas

Para Guilherme, quando uma pessoa precisa de auxílio para se reerguer, a ajuda deve vir de diversas formas. Para garantir que todos tenham essa oportunidade, o Céu Aberto tem parcerias que visam esse crescimento. Além de uma cama para dormir e comida para sustentar o corpo, o projeto promove orientações jurídicas para pessoas como Lauro, 49, que foi expulso de casa por ser alcoólatra.

Por mais que tivesse propriedades no nome dele, a esposa vendeu todas e o deixou na rua. Foi no Céu Aberto que se reencontrou com a vida. Agora estão tentando conseguir uma aposentadoria para ter mais liberdade.

Lauro Mueller
Lauro no gramado do Céu Aberto | Foto: Guilherme Antonio da Silva/Arquivo pessoal

Além disso, na própria casa são promovidas oficinas de artesanatos para garantir renda para a manutenção do local e para que os moradores aprendam novas atividades. A madeira para a produção é fruto de doações, que são viabilizadas graças às habilidades de negociação de Leonardo, que entra em contato com parceiros para conseguir materiais para o projeto.

Alguns dos artesanatos produzidos no Céu Aberto pelos moradores da casa | Foto: Montagem/ Arquivo pessoal

Com a Fundação Municipal 25 de Julho, a parceria é outra. Lá alguns moradores da casa tiveram acesso a cursos nas áreas de agricultura, corte de pescados, cultivo de hortas, panificação, trabalhar com congelados, formações voltadas para área da produção rural.

Já na Univille, conseguiram o acesso ao curso de nutrição para pessoas em situação de vulnerabilidade de forma gratuita. Guilherme conta que já inscreveu algumas pessoas do Céu Aberto.

“A ideia do projeto é poder devolver a esperança. Nossa ideia é gerar uma perspectiva e gerar um desenvolvimento com a pessoa. Desenvolver uma performance de ocupação e aprendizado”, conclui o idealizador do Céu Aberto.

Trabalho de pastorear

Quase todos que chegam em casa têm família, mas, devido a trajetória de vida de cada um, costumam ser afastados desses familiares. Lauro, por exemplo, tem dois filhos, que ele vê apenas uma vez por ano. Ele pretende voltar para as crianças, mas acredita que a mulher não vai deixar. Neste meio tempo em que vive na casa, ocupa o tempo cuidando do quintal, jogando sinuca com e lendo a bíblia.

A horta da chácara é comandada por Lauro, com a ajuda dos outros moradores do local | Foto: Arquivo pessoal

Já Leonardo tem uma filha de 8 anos. A menina mora em Curitiba com a irmã dele, cidade que Leonardo pretende voltar e se estabelecer, e, quem sabe, abrir um comércio. Para ele, a prioridade agora é dar exemplo para a filha. “Viver uma vida normal digna, longe de qualquer tipo de infração, longe da marginalidade, uma vida em paz”, pontua.

Leonardo ajudando a cozinhar no Céu Aberto
Leonardo atrás em uma das suas funções dentro da casa, ajudar na preparação das refeições | Foto: Arquivo pessoal

Para quem não tem filhos, como Geovane, o contato é com as irmãs. Ele as visita para realizar trabalhos e em outras ocasiões. Geovane gosta quando a casa recebe bastante visitantes. “Rem uns grupos que vem aqui na casa também, é muito importante quando vem pessoas de fora, é como se fosse a família da gente, a gente fica feliz quando recebe a visita”, conta.

grupo de escoteiros
Grupo de escoteiros que fez uma visita ao projeto | Foto: Arquivo pessoal

Aos poucos, os moradores do Céu Aberto vão se recuperando, cada um no seu tempo. Guilherme explica que é feito diagnóstico de cada um que chega. Neste momento é definido quanto tempo cada um vai ficar no projeto e que tipos de cuidados serão necessários. O Céu Aberto ainda não tem atendimento psicológico fixo, mas essa demanda está no radar de Guilherme, que está em processo de regularização da casa.

Ele acredita que, com os documentos em mãos, vai conseguir firmar parcerias e ampliar os cuidados do projeto. No momento eles vivem de doações e ajuda de familiares de alguns moradores.

No fim, Guilherme tenta que todos saiam com algum tipo de ofício, para realmente terem a chance de reintegração com a sociedade. “A gente chama ele de pastor pelo trabalho que ele faz, que é um trabalho de pastorear”, diz Leonardo.

Acolhimento para todos

No último levantamento do Tribunal de Contas de Santa Catarina (TCE-SC), de 2020, Joinville tinha 563 pessoas em situação de rua. A cidade fica atrás apenas da capital, com 1.153. De lá para cá, é notável o aumento de pessoas nas ruas da cidade. Para entender o real número e situação de pessoas nesse tipo de vulnerabilidade, a Prefeitura de Joinville contratou uma empresa que vai realizar este levantamento, que deve ficar pronto no segundo semestre de 2023.

Além dos homens, a chácara abre as portas para alguns animais sem lar. Catarina é uma das moradoras, a égua era do vizinho do Céu aberto, que não tinha mais como cuidar dela | Foto: Montagem\ Arquivo pessoal

Até o novo levantamento, os dados disponíveis são da série histórica, que marcou os números de Joinville de 2012 até 2015.

Fonte: Programa Cidades Sustentáveis| Joinville

Essas informações são fruto da base de dados do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico). Na teoria, as famílias vulneráveis deveriam se inscrever para garantir o acesso aos programas sociais, mas a realidade é diferente. Muitas pessoas, principalmente as em situação de rua e muito afastadas do Centro da cidade acabam não tendo acesso aos formulários de inscrição. Então é de se esperar que haja uma subnotificação.

No último levantamento divulgado, em 2019, havia 3.640 pessoas em Santa Catarina em situação de rua. A maior concentração estava nas cidades de: Florianópolis (956), Itajaí (301), Joinville (294), Blumenau (196), Lages (182), Brusque (136), São José (116), Tubarão (101), Balneário Camboriú (92), Palhoça (83), Criciúma (84), Itapema (76), Gaspar (68), Rio do Sul (60), Chapecó (60), Navegantes (59), Araranguá (57) e Caçador (48).

Em Joinville, quem tem cadastro pode se alimentar nos restaurantes populares de forma gratuita. O restaurante no Bucarein, área central da cidade, atende todos os dias da semana e serve café da manhã, almoço e jantar. Para a população em geral, o valor por pessoa é de R$ 2,50 o café da manhã, e R$ 5 o almoçou ou jantar.

Os idosos com renda de até 1,5 salário mínimo, encaminhados pelo Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), pagam R$ 1 pelo café da manhã e R$ 2 o almoço e o jantar. Para os usuários do Cadastro Único beneficiários do programa Auxílio Brasil, com de até meio salário mínimo; idosos e pessoas com deficiência que recebem o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e foram encaminhados pelo Cras, o valor do café da manhã é de R$ 0,50 e do almoço ou jantar R$ 1. Já no restaurante do Adhemar Garcia, Zona Sul de Joinville, o atendimento é nos dias de semana com almoço.

Áila Masson, voluntária do Céu Aberto e organizadora do Café com Amor, agora chamado de ABA, conta que conhece um homem que mora em um quartinho e por ter essa moradia, não consegue se alimentar no Restaurante Popular todos os dias. O pouco dinheiro que ganha não paga a alimentação. Por isso, frequenta o café de domingo, que Aila e outros voluntários promovem na Praça Nereu Ramos.

Uma mão na frente e outra atrás

A voluntária lembra que, não é porque a pessoa consegue acessar um programa social, que ela consegue se manter sozinha. “A partir do momento que recebem esse auxílio eles começam a ser cobrados no restaurante popular, como tu vai cobrar comida deles?”, questiona. Essa inconsistência a fez continuar com os cafés de domingo. Ela relata que já foi orientada a parar com as ações na praça por autoridades.

O argumento dado, segundo ela, é a possibilidade que essas pessoas teriam de recorrer à Assistência Social do município. Áila diz que as diversas repressões fizeram o número de voluntários do café diminuir e as pessoas deixarem de frequentar por medo. Ela lembra que não são apenas dependentes químicos e ressalta que o café alimenta famílias inteiras.

“Antes a gente montava um café com várias comidas. Agora só alguns lanchinhos e orientamos para ir no restaurante popular”, diz a voluntária. Além do restaurante, a equipe de voluntários leva as pessoas para o Centro Pop.

Assim como Guilherme, Áila viu que era preciso fazer mais. O acolhimento precisa ser completo e possibilitar o retorno à vida em sociedade. Por isso, firmou uma parceria com o Céu Aberto. Ela busca arrecadar doações para o local e chega a encaminhar algumas pessoas para lá. Já conseguiu beliches e quando consegue vai até o Quiriri visitar o local.

Voluntários do Café com Amor em visita ao Céu Aberto | Foto: Reprodução
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