Há um ano, Joinville confirmava o primeiro caso de Covid-19 no município. De lá para cá, a vida de muitas gente mudou. Os escritórios foram trocados por cômodos adaptados na casa, as reuniões de trabalho e encontros entre amigos passaram a ser por videochamadas. Máscaras passaram a fazer parte do traje e as saídas ficaram cada vez mais restritas. Enquanto pacientes lutam pela vida, famílias ainda vivem o luto da perda. O mundo tenta se adaptar ao “novo normal”.
Ao longo desse um ano, 65.562 joinvilenses contraíram a doença. Destes, 60.377 se recuperaram. A cidade contabiliza 786 mortes confirmadas por coronavírus.
Um dos últimos recuperados foi o vendedor de carros Rodrigo Martins Locks, 44 anos. Depois de 82 dias internados em um hospital do centro da cidade, sendo 62 na UTI, ele recebeu alta nesta sexta-feira, 12.
Apreensão e angústia
Rodrigo não tinha comorbidade alguma, mas contraiu a Covid-19 e, em questão de dias da aparição dos primeiros sintomas, foi da medicação simples à intubação na UTI do hospital Dona Helena.
A filha, Maria Eduarda Nunis Locks, 23, conta que a família cumpria o isolamento social e só saía de casa para ir ao trabalho ou estudar. Rodrigo estava há meses trabalhando de casa. A necessidade de internação pegou a todos de surpresa.
“Numa quinta-feira, ele começou com febre muito alta, no sábado, foi ao hospital, medicaram e voltou pra casa. Na terça-feira ele voltou pro hospital e ficou no quarto. No dia do Natal ainda fizemos uma chamada de vídeo e conversamos com ele”, conta.
No entanto, na noite do dia 26 de dezembro, Rodrigo teve uma piora drástica e precisou ser intubado. A partir deste dia, diz a filha, iniciou o sofrimento da família. De 62 dias de UTI, 53 deles foram em coma. Neste período, Rodrigo ainda teve paradas cardiorespiratórios, precisou de duas transfusões de sangue e apresentou piora pulmonar.
“Às 11 horas da noite do dia 26, ele ligou pra gente com o celular do hospital e disse: ‘vou ser intubado, amo vocês’. Foi só o que conseguiu falar, meio ofegante. Na noite de Ano Novo, estava eu, minha mãe, meu irmão, meu namorado e minha cunhada sentados na cama dele chorando e rezando muito. Choveu demais, faltou luz. Foi uma noite terrível”, narra a filha.
“Sempre acreditei”
Após a internação do pai, a família de Maria Eduarda passou a experimentar uma rotina rodeada de incertezas. A moça, que trabalha como dentista em São Francisco do Sul, conta que realizava o percurso em lágrimas. A mãe, que também contraiu a doença, parou de produzir doces, o que afetou a situação financeira da família.
Dentro de casa, o silêncio reinava, exceto nos momentos em que precisavam discutir a situação do pai, que passou mais de 30 dias sem responder ao tratamento.
“Fizemos uma videochamada com uma psicóloga e ele, já em coma. Depois de um mês, liberaram uma visita. A gente conversava, fazia carinho, mas ele não apresentava sinal algum”, lembra.
Não foram poucas as vezes que a família foi chamada ao hospital para avisar que o pai poderia não resistir. O termômetro que indicava se o dia seria bom ou não dependia das ligações do médico, que informava diariamente o quadro clínico de Rodrigo.
“Minha família iniciou uma novena para Nossa Senhora de Lourdes no dia 2 de fevereiro e finalizou no dia 10. No dia seguinte, de manhã, ele acordou”
“Minha mãe teve uma crise nervosa e foi parar no hospital. Um padre chegou a fazer a unção dos enfermos. Mas minha família iniciou uma novena para Nossa Senhora de Lourdes no dia 2 de fevereiro e finalizou no dia 10. No dia seguinte, de manhã, ele acordou”, relembra. “Nunca, neste tempo todo, passou pela minha cabeça que ele não ia resistir. Sempre acreditei”, completa Maria Eduarda.
A volta para casa
Depois de acordar da sedação, a família revezava entre si para não deixá-lo sozinho no quarto. “O que ninguém conta é como o paciente sai da UTI. Ele se transforma pela abstinência dos remédios, teve delírios. Passamos por períodos difíceis nas primeiras semanas pós intubação. Fica sempre um medo e um trauma. Ele respira mais forte e já perguntamos se está bem”.
Com 40 quilos a menos, sem andar, falar – por conta de uma paralisia na corda vocal esquerda – e alimentando-se por sonda, Rodrigo retornou para casa, nesta sexta-feira, 12 de março.
“Agora tem horário de medicação, dieta. Foi toda uma readaptação na casa. Precisamos aprender a lidar com andador, cadeira de banho, cadeira de rodas. A vida é bem diferente. A gente consegue ler o lábio dele, num leve susurro, ele diz: ‘não falo, não ando, não faço nada’. É muito triste ver ele assim”, diz.
Mas, apesar da situação debilitada do pai, Maria Eduarda acredita que estas sequelas sejam passageiras e tem esperança que o pai possa voltar a ser quem antes era: um homem saudável e dedicado.
“Ele acha que o mundo é a casa dele”
Outra família afetada pela pandemia foi a de Rebeca Duvoisin Horstmann, 33 anos. Há mais de um ano, ela cumpre o isolamento social na companhia dos filhos e do marido em um pequeno apartamento na zona central de Joinville.
Por causa da condição de Ernesto, de três anos e meio, filho mais velho que é asmático e faz parte do grupo de risco, a família não tem saído nem para ir ao mercado. Até as datas comemorativas foram adaptadas, com a participação de amigos e familiares apenas por videochamadas.
“As coisas do mercado a gente pede delivery. Saímos apenas para ir ao correio quando precisa, já que não tem outra forma. Até remédios da farmácia pedimos para entregar, a não ser que precise de receita, aí somos obrigados a ir até lá”, relata.
O filho mais novo, Gael, nasceu em janeiro do ano passado, dois meses antes das medidas de isolamento serem decretadas em Joinville. Mesmo assim, Rebeca conta que, por se tratar de uma gravidez de risco, já não saía de casa desde setembro.
Sua última “aglomeração” foi em dezembro de 2019, quando foi ao shopping comprar roupas para o filho que estava para nascer. O menino, de um ano e dois meses, ainda não sabe o que é sair de casa.
“O Gael não sabe o que é o mundo. Ele acha que o mundo é a casa dele. Quando vê outras pessoas percebemos que ele é bem tímido, diferente do que é com a gente aqui em casa. Aqui, ele balbucia um monte, com os outros ele se esconde. Não é acostumado com pessoas”, define a mãe.
Adaptação da rotina
Há quatro meses, após o fim de sua licença maternidade, a mulher passou a trabalhar em sistema home office, assim como o esposo, Alexandre. Rebeca é psicóloga e funcionária pública, já o companheiro atua como analista de marketing.
Sem um espaço específico para adaptar um escritório, ambos dividem a mesa da cozinha e o espaço da sala de estar em meio aos brinquedos dos filhos, já que o prédio onde vivem não possui área de lazer. Rebeca trabalha pela manhã, já o esposo, o dia todo. Dentro desta rotina, cada um fica responsável pelo cuidado de um filho: Rebeca pelo mais novo e Alexandre pelo mais velho.
“Está sendo uma experiência bem intensa, os meninos precisam de espaço para correr, gastar energia. A gente explica o momento, mas criança não entende, eles ficam irritados. O Ernesto às vezes não quer comer. Ele frequentava a creche desde os seis meses e a casa dos avós com frequência. De repente, isso foi tirado dele. O pai sempre faz reuniões do trabalho, tem que pedir para as crianças fazerem silêncio. Isso tudo estressa”, conta.
Em fases diferentes, o filho mais novo ainda mama no peito e o mais velho exige atenção para brincar. Rebeca confessa que, principalmente no início, chorava todos os dias por sobrecarga. E, além do cansaço, cultiva um sentimento de culpa.
“A gente não dá conta. Eu me estresso muito quando a casa está desarrumada. Pra mim é terrível, porque sou metódica. A gente quer ter controle e não tem. Eu vou dormir com sentimento de culpa por não conseguir fazer uma comida mais bem elaborada; porque penso que não dei atenção para os meus filhos; porque eu fico estressada e com raiva. Mas eles são meus filhos, amo mais que tudo. É muito insano”, desabafa.
“Era a gente contra o vírus”
Por causa do convívio diário forçado e constante, ao qual a família não estava acostumada, Rebeca diz que houveram momentos de divergência entre o casal. “Mas sentamos e conversamos. Era a gente contra o vírus, não podíamos deixar ele afetar e gerar brigas. Agora, quem está estressado, se isola”, combinou o casal.
Outra forma de aliviar o estresse encontrado pelos pais é, assim que colocam as crianças para dormir, tiram um tempo a sós para assistir a séries e se dão “ao luxo” de pedir comida, diz Rebeca.
Sem poder sair, ela afirma que limpar a casa enquanto o esposo cuida das crianças tem sido seu escape para arejar a cabeça.
“Tinha um período, no ano passado, que eu saía para fazer caminhadas e andar de bicicleta que também me ajudava bastante. Mas com o agravamento da situação, não fui mais. Era um tempo que tirava pra mim, ouvir minhas músicas, sem ser da Galinha Pintadinha”, brinca.
Sem previsão para sair do home office e voltar a encontrar familiares e amigos, Rebeca tem acompanhado o número de mortes e casos confirmados aumentarem, de dentro de seu apartamento. A cada notícia sobre aglomeração, o sentimento é de revolta.
“A gente se irrita muito vendo. É um sentimento de impotência. É muito esforço que estamos fazendo que não tem surtido efeito por culpa dos outros”, afirma.
Saúde em colapso
No ano passado, a pandemia atingiu seu pico entre julho e agosto, quando 219 pessoas morreram. Em 2021, com 120 mortes, janeiro foi o mês com mais óbitos.
Com a confirmação da nova variante na cidade, no dia 4 de março, Joinville já registrou no mês 67 mortes e 4.574 novos casos. A média é de 5,5 mortes e 381 contaminações por dia.
Tanto hospitais públicos quanto privados já atingiram lotação máxima em unidades de tratamento exclusivos para Covid-19 em pelo menos três ocasiões. Atualmente, há nove leitos de UTI adulto disponíveis.
(Continua após o infográfico)
De acordo com o secretário da Saúde do município, Jean Rodrigues da Silva, a nova variante, por ser mais grave, é, justamente, a responsável por este índice.
“A nova variante tirou nosso poder de previsibilidade. Até ano passado, não tinham muitos casos de internações entre jovens e pessoas de 30 a 40 anos intubados”, afirma.
Rodrigues diz que a secretaria da Saúde passou um ano estudando a variante antiga. Com a chegada da nova, novos estudos e adaptações precisarão ser feitas para manter a rede funcionando e atendendo a todas as demandas, seja de coronavírus ou não.
“Algumas coisas já sabemos, que precisa de melhora no diagnóstico e no tempo resposta. Agora estamos estudando os casos de Manaus, São Paulo e Chapecó para analisar o que fizeram e nos direcionar. O meu esforço é manter toda a rede funcionando. Queremos ampliar os pontos de atendimento e intubamento da população”, disse.
Na semana passada, o pronto atendimento Leste foi adaptado como hospital de campanha. Nesta sexta-feira, o UPA Sul também passou a funcionar como hospital de campanha. Além disso, quatro unidades básicas (Aventureiro, Costa e Silva, Pirabeiraba e João Costa) passarão a atender, 24 horas, as demais demandas.
Além de ampliar a rede, a Prefeitura de Joinville anunciou novas medidas restritivas na segunda-feira, 10, com toque de recolher. O governo do estado também mudou regras com endurecimento aos fins de semana. O objetivo é diminuir a taxa de contaminação e conter a pandemia enquanto se busca avançar na imunização. As vacinas são vistas como a esperança de que o pesadelo da Covid-19 vire coisa do passado.